A complexidade da estrutura dos sobrenomes/apelidos portugueses é reflexo, segundo Carlos Bobone, de “uma sociedade altamente hierarquizada, mas sem uma divisão única e clara das camadas sociais”. Nessa sociedade, as famílias faziam escolhas convenientes conforme a ordem fosse ostentar nobreza, provar sua fé ou afastar suspeitas de pertencimento a grupos perseguidos – p.ex. judeus e mouros.
Bobone atribui as origens remotas dos apelidos portugueses às invasões bárbaras, quando os lusitanos romanizados abandonaram o limitado sistema romano de três elementos – praenomen, agnomen e cognomen, sendo o primeiro equivalente ao nome da pessoa, o segundo equivalente à linhagem e o terceiro, ao ramo ou família – pela riqueza da onomástica aglutinadora dos povos germânicos invasores. Também saíram de cena os romanos Caio e Marco e entraram em cena os visigodos Gundisalvo (Gonçalo, que originaria o patronímico Gonçalves) e Rodorigu (Rodrigo, que originaria o patronímico Rodrigues). Nos últimos séculos da Idade Média, o conceito de apelido já está associado à ideia de linhagem. É nessa época que surgem preocupações com a manutenção dos apelidos de antepassados por seus descendentes, principalmente pelos herdeiros das terras que houvesse.
No século XV, enfim, a Coroa assume a autoridade para concessão, mudança, restrição e proibição de uso de apelidos. Os agraciados com Cartas de Brasão de Armas ou Cartas de Fidalgo de Solar Conhecido por serviços prestados à Coroa, quando recebiam novo apelido, eram pelos mesmos atos alçados à condição de fidalgos e seus novos apelidos se tornavam privativos. Essas disposições, entretanto, não impediram famílias plebeias de adotar apelidos fidalgos. A usurpação de apelidos importantes pela população era algo tão comum que se tornou assunto para pronunciamento de legistas e funcionários régios, nos lembra Carlos Bobone. É por essa razão que não se deve hoje deduzir o pertencimento a uma família importante apenas pela semelhança de apelidos.
A onomástica portuguesa, já dissemos, é por demais complexa para permitir quaisquer conclusões sem a devida investigação genealógica. Para comprovar essa afirmação, há que se considerar, por exemplo, que até o século XIX não havia uniformidade de apelidos mesmo entre membros de uma mesma família e que um indivíduo podia modificar seus apelidos durante a vida, adotando, na idade adulta, a combinação que lhe parecesse mais adequada em vista de sua condição social. Além disso, era comum que criados e escravos adotassem os apelidos de seus padrinhos; judeus batizados, os de cristãos velhos, principalmente no fim do século XV; e bastardos não reconhecidos, os de seus supostos pais.
O caso dos judeus convertidos é especialmente interessante, segundo Carlos Bobone, pois eles mantiveram os apelidos portugueses que receberam após o batismo forçado mesmo quando já se encontravam em países onde poderiam praticar livremente o judaísmo – Estados Unidos, França e Holanda, por exemplo. Por essa razão, em muitos desses países eles ficaram conhecidos como judeus portugueses. Alguns se tornaram membros proeminentes de seus países de adoção, formando numerosas famílias que mantiveram a herança do apelido português.
Um fato interessante e observado por quem pesquisa fontes paroquiais antigas é o tratamento de apelidos variáveis como se fossem adjetivos que pudessem variar em gênero. Assim temos mulheres identificadas como Cardosas, Carvalhas, Coelhas e Pintas. Essa prática persistiu do século XIV até o século XVIII. No século XIX, enfim, impuseram-se punições a quem alterasse a forma dos apelidos, e o costume desapareceu em algumas décadas.
Um costume exclusivo dos nobres, principalmente da Casa Real, como se vê no exemplo abaixo, era o uso de dezenas de nomes próprios ou apelidos extraídos de todos os costados, prática que perdurou do século XVIII até o início do XX. Novamente, a posse de um apelido composto ou longo não implica uma origem nobre, pois o citado costume também encontrou caminho até classes mais baixas.
Também no século XVIII, famílias proprietárias de palácios, casas nobre ou quintas adquiriram o costume de tomar como apelido o nome do santo de devoção, para o qual tinham uma capela ou oratório onde muitas vezes os jovens da família se casavam.
É no século XIX, enfim, que se estabelece em Portugal o costume, já presente em outros países, de a mulher adotar o apelido de seu marido – até então, quando havia coincidência de apelidos, a causa era um casamento entre parentes ou o mero acaso. Isso estabilizou os apelidos, pois os filhos passaram a também receber o apelido paterno. A precedência desse apelido em relação ao materno, no entanto, foi determinada apenas em 1943 em parecer da Procuradoria da República. Embora a obrigatoriedade de precedência tenha sido abolida, essa prática é ainda hoje respeitada.
Até a existência do Código Civil, as crianças usavam apenas seus nomes próprios, sendo os apelidos definitivos normalmente escolhidos apenas quando tornavam-se autônomas em relação à tutela familiar. Quem pesquisa assentos paroquiais antigos normalmente se depara com esse fenômeno. O costume não se aplicava, entretanto, aos nobres, que cedo adquiriram o costume de dar nomes completos aos filhos desde a tenra infância como forma de marcar sua estirpe.
Obs.: Este texto expande, com base na obra de Carlos Bobone, aspectos gerais sobre os apelidos portugueses introduzidos em texto anterior. Os textos seguintes apresentarão em detalhes outros aspectos que foram apenas mencionados naquele texto.
José Araújo é linguista e genealogista.
3 comentários
Genealogia Prática - Patronímicos · 18 de novembro de 2017 às 06:13
[…] a decadência do sistema romano e a vulgarização da onomástica germânica que foram citadas no texto anterior, não se poderia dizer que existissem, no território que se tornaria Portugal, […]
Genealogia Prática - Topônimos · 19 de novembro de 2017 às 06:55
[…] sistema de apelidos- ou sobrenomes – português é bastante complexo, como afirmei no texto anterior. Alguns apelidos atuais derivam de nomes de pessoas que viveram há muitos séculos (Gonçalves, […]
Genealogia Prática - Raridade · 6 de junho de 2018 às 09:38
[…] textos anteriores, tratei da complexa onomástica portuguesa, isto é, dos costumes de atribuição de nomes e apelidos (sobrenomes) praticados em Portugal em […]
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