Se no último século expectativa de vida aumentou e a taxa de mortalidade – principalmente nos primeiros anos de vida – diminuiu muito em Portugal, o cenário era bem diferente nos idos de 1800: morria-se muito e cedo. Embora houvesse pessoas longevas, mortes de crianças e adultos jovens eram comuns.

Enquanto hoje a morte hospitalar, no afastamento da família, é bastante comum, naquela época morria-se em casa. Mais do que isso, todos, mesmo crianças, testemunhavam a agonia do moribundo e até a exposição de seu cadáver. A morte estava, portanto, integrada ao cotidiano familiar e comunitário, não era algo a ser ocultado.

Cabia às mulheres o sacrifício físico e psicológico de fazer as vigílias e orações para o moribundo, o que poderia durar vários dias. A elas cabia também as primeiras providências após a morte: lavar e vestir o cadáver – nas classes mais baixas com o traje que ele vestira em seu casamento ou outro que ele já tivesse reservado para o momento, pois tudo era planejado com antecedência. No centro e no norte do país, era comum que a família se abstivesse do consumo de carne por alguns dias ou até o sepultamento.

Os enterramentos ocorriam dentro ou no terreno das igrejas até pelo menos 1835, quando se decretou a obrigatoriedade dos sepultamentos em cemitérios públicos. Isso transformou o ritual, que antes se circunscrevia ao lar e à igreja, passando esta a ser uma instância intermediária para as famílias religiosas. No assento de óbito que se vê abaixo, de meu trisavô paterno, faz-se a ressalva de que o defunto foi enterrado na igreja porque não havia cemitério público na localidade.

Óbito de Júlio de Araújo – 25/12/1866 – Barcos, Tabuaço, Viseu

Aqui a transcrição:

Aos 25 dias do mês de dezembro do ano de 1866, às cinco horas da tarde do dito dia, na casa nº 9 da rua da Fonte desta freguesia de Nossa Senhora da Assunção de Barcos, concelho de Tabuaço, diocese de Lamego, faleceu, tendo recebido os sacramentos da Santa Madre Igreja, um indivíduo do sexo masculino por nome Júlio de Araújo, viúvo de Maria Rita, da idade de 70 anos, proprietário, natural desta freguesia, morador na dita rua da Fonte, filho legítimo de Manoel de Araújo, proprietário, e de Luisa Motta, também natural desta freguesia, o qual fez testamento deixando quatro filhos e foi sepultado na igreja desta freguesia por não haver cemitério público. E para constar lavrei em duplicado este assento que assino. Era ut supra. O abade [] Antonio Augusto Tavares

Devido à grande resistência à mudança de costumes seculares, os cemitérios apenas se tornaram de fato locais de sepultamento após 1844 por conta de um decreto. Ainda assim, a influência da igreja na administração dos cemitérios foi grande até 1911, quando os cemitérios foram enfim declarados seculares.


José Araujo é linguista e genealogista.


José Araújo

Genealogista

1 comentário

Genealogia Prática - Viático · 28 de outubro de 2017 às 06:28

[…] segundo texto dedicado ao evento da morte – leia aqui o anterior – trata dos sacramentos da Igreja, os quais, talvez você já saiba, são […]

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