Embora sejam fontes preciosas de informação, os inventários nem sempre estão acessíveis para o genealogista. Poucos sobreviveram aos maus cuidados e, dentre os que sobreviveram, apenas a menor parte foi digitalizada e pode ser solicitada aos órgãos que os guardam. Em dois textos anteriores, explorei a riqueza de informações – evidências de casamentos mistos e de filhos havidos fora do casamento – que se pode encontrar nesses documentos.
Recentemente tive a sorte de poder consultar um inventário de 1822 guardado no Arquivo do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ). Esse documento permite obter uma boa quantidade de detalhes sobre a vida familiar de minha tetravó Maria Tereza da Paz, que é citada como a primeira herdeira de sua mãe Inácia Angélica de Moraes (1775-?). Inicialmente farei alguns comentários gerais sobre a inventariada e sua família para depois analisar uma questão específica sobre a herdeira Maria Tereza.
Na segunda página do documento são declarados, por ordem de idade, os treze filhos da inventariante, que era viúva de Francisco Gomes Pereira (1764-1821?):
- Maria Tereza da Paz, casada com o Capitão Joaquim Francisco do Rego (1791)
- Francisco Gomes Pereira, de idade de vinte cinco anos (1797)
- Luiza Maria da Conceição, casada com Miguel Tavares (1798?)
- Pedro Gomes Pereira, de idade vinte e três anos (1799)
- João Pinheiro de Souza, casado com Luiza Angélica (1800-1804?)
- José Pereira Soares, casado com Emerenciana de tal (1804-1806?)
- Ana Florentina do Amor Divino, casada com João Pinheiro de Souza de Moraes (1806-1807?)
- Mariana, de idade de quatorze anos casada com Higino Correa Barbosa (1808)
- Manoel Gomes, de idade de onze anos (1811)
- Francisca Joaquina, de idade de oito anos (1814)
- Isabel Francisca, de idade de seis anos (1816)
- Inácio Pereira, de idade de quatro anos (1818)
- Fernando da Silva, de idade de dois anos (1820)
Maria Tereza foi batizada em Sacra Família do Tinguá, Rio de Janeiro, em 3 de fevereiro de 1791. Sabemos seus pais se casaram em Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, em 7 de junho de 1790. Por esses dados, inferimos que Inácia se casou grávida ou que Maria Tereza nasceu pouco antes do termo. Parece ter havido uma distância entre o parto da primeira e o do segundo filho, mas isso não elimina a possibilidade de o casal ter perdido algum filho nesse intervalo de seis anos. A partir de então, Inácia teve mais onze partos quase seguidos, o que não surpreende para uma jovem que se casou com 14 anos, tal como ocorreu com sua filha Mariana.
A variação de sobrenomes dos filhos de Inácia e Francisco – Pereira, Gomes, Gomes Pereira, Pereira Soares, Pinheiro de Souza e da Silva – não deve ser algo surpreendente, pois era comum na época. O Gomes vem de Ana Gomes, avó paterna de Francisco. O Pinheiro de Souza, de João Pinheiro de Souza, pai de Francisco. O Pereira vem de Paula Pereira Monteiro, mãe de Francisco. O Soares, de Antônio Luiz Pereira Soares, pai de Inácia. Apenas o Silva do último filho não teve sua origem familiar identificada até o momento.
Sabendo que Inácia abriu inventário em agosto de 1822 e que seu último filho deve ter nascido em 1820, podemos supor que Francisco Gomes Pereira deve ter falecido em algum momento entre agosto de 1820 e agosto de 1822. Inácia tinha então 47 anos, e poderia ser considerada uma senhora com muitas responsabilidades, tendo em vista os bens listados em seu inventário, de que tratarei em outro texto.
Feitas as considerações iniciais, vou agora me deter em um trecho bastante curioso a respeito do casal de herdeiros Maria Tereza e Joaquim Francisco, meus tetravós. Na seção denominada Declarações da Inventariante, que vem após a relação de bens inventariados e foi registrada em 8 de janeiro de 1823, lemos, no segundo parágrafo da página exibida abaixo, o seguinte trecho, que transcrevo a seguir:
Declarou mais a inventariante que a Herdeira Maria Tereza, mulher do coherdeiro acima, se acha ausente de seu marido, e nessa ausência está devendo ao Casal dinheiros de empréstimos além das quantias acima, e sem clareza oito mil quatrocentos e vinte réis sem clareza.
Sabemos que Maria Tereza da Paz habilitou-se para casar com Joaquim Francisco em 17 de dezembro de 1809, portanto os dois filhos que o casal teve – José e Pedro Gomes de Moraes, este meu trisavô materno – devem ter nascido em algum momento entre 1810 e 1822, quando o casal parecia já viver apartado, embora não se elimine a possibilidade de terem voltado a conviver maritalmente depois e concebido um desses filhos – ou ambos.
Sabemos também, por análise do inventário de Pedro Cipriano Pereira Belém, que este fazendeiro morreu solteiro e reconheceu os cinco filhos que teve com Maria Tereza da Paz, os primeiros dos quais podem ter nascido por volta de 1830. Isso sugere que o marido de Maria Tereza pode ter falecido entre 1822 e 1830, mas não se descarta a possibilidade de Maria ter tido filhos com Pedro Cipriano ainda enquanto casada e ausente de seu marido Joaquim Francisco.
Uma leitura alternativa da expressão se acha ausente de seu marido é que Joaquim Francisco do Rego poderia estar fora de casa por alguma razão não relacionada à vida matrimonial. Talvez estivesse em alguma missão ou viagem com finalidade profissional ou comercial. O facto é que a descoberta desse novo inventário parece ter trazido mais informações e também mais questões a respeito da história de minha tetravó.
Sigo na busca de mais documentos e informações, pois a Genealogia é também a ciência da persistência. E aproveito para agradecer à prima Adriana Engelbart pela inestimável ajuda no registro do inventário.
José Araújo é genealogista.
3 comentários
Escândalo – Genealogia Prática · 31 de março de 2022 às 08:41
[…] familiares. Deveriam, mas às vezes trazem informações que nos geram dúvidas. Assim foi com o inventário de minha pentavó Inácia Angélica de Moraes (1775-?), no qual em determinado ponto se informa o […]
Meio – Genealogia Prática · 1 de agosto de 2022 às 17:27
[…] Pereira Belém era meio-irmão de meu trisavô Pedro Gomes de Moraes – filho da mesma Maria Thereza da Paz (1791-1855) com o capitão Joaquim Francisco do Rego. Esse texto permitiu conhecer um pouco da história familiar e financeira de Manoel, bem como de […]
Involuntária – Genealogia Prática · 6 de fevereiro de 2023 às 09:28
[…] trisavô. Por alguma razão, esse casamento estaria fadado ao insucesso, pois, a partir de 1820, o casal passou a viver separado. Joaquim terminou seus dias em Itacuruçá, Rio de Janeiro, onde morreu aparentemente só com 70 […]
Os comentários estão fechados.