Em 14 de maio de 1739, nesta paroquial, em minha presença e das testemunhas abaixo nomeadas, se receberam em matrimônio, por palavras de presente, feitas as diligências necessárias na forma do sagrado Concilio Tridentino e constituições, Manoel Soares, natural e batizado na freguesia de Penacova, bispado de Coimbra, filho legítimo de Bartolomeu Soares de sua mulher Madalena Simões, com Bárbara Correa, viúva que ficou de Pedro Álvares Cabral, filha legitima de Mateus Tavares da Costa e de Isabel Pereira do Lago, batizada a contraente e moradores ambos nesta freguesia […] sendo testemunhas Francisco Xavier da Silva e Manoel Álvares de Castro […]
A noiva Bárbara Correa de Sá era filha de meus octavós Mateus e Isabel. Era já viúva e talvez esse tenha sido seu segundo casamento, mas não seria o derradeiro, pois foi encontrado novo assento matrimonial em que se informa que ela teria ficado viúva novamente, apenas onze anos depois de casada com Manoel Soares. Esse novo assento é interessante, pois traz uma informação valiosa sobre esse grupo familiar: seu local de habitação na cidade do Rio de Janeiro. Vejamos o que diz o assento em sua transcrição.
Aos dezessete de novembro de mil setecentos e cinquenta, nesta paroquial, digo, na capela de Nossa Senhora da Saúde, de especial licença do excelentíssimo e reverendíssimo senhor bispo, na presença do reverendo coadjutor, o padre João Francisco da Costa e das testemunhas abaixo nomeadas, se receberam em matrimônio, por palavras de presente, feitas as diligências necessárias, na forma do sagrado Concílio Tridentino e constituições, João Álvares, natural e batizado na freguesia de Santiago da vila de Almada, patriarcado de Lisboa, filho legítimo de Luís Álvares e de sua mulher Brígida Maria, com Bárbara Correa de Sá, viúva que ficou de Manoel Soares, filha legítima de Mateus Tavares da Costa e de Isabel Pereira, natural desta cidade e moradores na Ilha das Cobras desta freguesia, com […] das provisões que apresentaram [do] excelentíssimo e reverendíssimo senhor bispo e [do] muito reverendo juiz dos casamentos doutor Luiz da Silva Borges e por não constar de impedimento […] canônico e terem-se [confessado] lhes […] sendo testemunhas João Nunes Gomes e Manoel Álvares Setúbal de que fiz este assento […]
A capela onde Bárbara e João se casaram localizava-se em uma região ainda remota da cidade chamada Valongo. Sua construção data de 1750, portanto o casal teve o privilégio de se casar em um templo novo. Talvez por isso tenham tido a necessidade de obter especial licença das autoridades eclesiásticas e o registro matrimonial encontre-se entre os livros da Candelária.
A Ilha das Cobras, local onde vivia a família de Bárbara Correa de Sá, é hoje uma instalação militar na Baía da Guanabara, mas, apesar de sua pequena extensão territorial, teve uma história bastante rica e ligada à defesa da cidade. Sua denominação inicial, dada pelos franceses que ocuparam a região entre 1555-1570, foi Ile des Chèvres (Ilha das Cabras). Em mapa de 1574, foi identificada como Ilha da Madeira. Entre 1583 e 1589 foi um depósito de africanos escravizados para comercialização e, com a falência do comerciante, foi arrematada pelos monges do vizinho Mosteiro de São Bento, pelo que passou a ficar conhecida como Ilha dos Monges. Foi durante a posse dos monges que esse acidente geográfico passou a ser conhecido por sua denominação atual, pois lá havia muitas cobras peçonhentas.
Seu valor estratégico na defesa da cidade foi reconhecido no início do século XVII por conta das invasões holandesas, e assim lá se construiu uma fortificação por ordem do governador Martim Correia de Sá. Essa fortaleza não resistiria ao tempo e seria substituída por outra por ordem do governador Salvador Correia de Sá e Benevides, filho do anterior. No início do século XVIII mais outra fortaleza seria construída, o que ressalta a importância que a pequena ilha teve na defesa da cidade, e que, ainda assim, não foi suficiente para impedir a invasão pelo corsário francês René Duguay-Trouin (1711).
Mas esses não são os únicos documentos encontrados que informam da presença da família dessa mulher em áreas da antiga cidade do Rio de Janeiro. Outro registro foi descoberto mediante pesquisa no Banco de Dados da Estrutura Fundiária do Recôncavo da Guanabara Sécs. XVII e XVIII, compilado pelo pesquisador Mauricio Abreu. Lá encontramos citação a uma escritura de venda cujo conteúdo transcrito apresento.
Escritura de venda de uma morada de casas que fazem o Coronel Governador da Ilha de Santa Catarina Manoel Soares Coimbra e sua mulher Dona Aniceta da Conceição Coimbra, por seu procurador Tenente Miguel da Silva Ramos, e Luiz Soares Coimbra ao Capitão José Gonçalves Marques – térrea, com três braças de testada, sita na rua que vai de São Joaquim para o Valongo, partindo de uma banda com casas de Frutuoso José da Cruz e da outra com José Machado, foreira a José Gonçalves da Silva em 2$700 anuais, herdada de seus pais João Álvares da Costa e Bárbara Correia de Sá, que a edificaram à sua custa.
José Gonçalves da Silva era filho de Bárbara e João Álvares da Costa, cujo assento matrimonial lemos acima. Supõe-se que na época em que a escritura foi lavrada ambos eram falecidos, pois o documento informa que José Gonçalves era herdeiro do casal. A informação relevante em termos geográficos diz respeito à localização da morada de casas que foi passada em escritura: “da rua que vai de São Joaquim para o Valongo”. Segundo o historiador Vivaldo Coaracy (In: Memórias da Cidade do Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1955, p. 525):
Do antigo Largo de Santa Rita à Praça da República estende-se hoje a Avenida Marechal Floriano, em continuação da Rua Visconde de Inhaúma de que é o prolongamento natural. Esta larga via de trânsito resultou das obras de urbanismo realizadas na administração Pereira Passos. A avenida Marechal Floriano segue o trajeto de duas antigas ruas em continuação uma da outra: a Estreita de São Joaquim e a Larga de São Joaquim, que deviam o nome à igreja e seminário de São Joaquim, situado no ponto de encontro de ambas, onde hoje se acha o Externato do Colégio Pedro II. […] Antes da construção da igreja, a rua Estreita de São Joaquim chamou-se do Cortume.
A morada de casas, portanto, se situava onde é a atual Rua Marechal Floriano, no trecho que termina na atual Rua Camerino, que foi a conhecida Rua do Valongo, de triste memória. Interessante ressaltar que na época tanto a Rua de São Joaquim quanto o Valongo já se encontravam integrados à cidade, que até o século XVIII tinha seu limite na Rua da Vala, atual Uruguaiana.
José Araújo é genealogista.