Após a chegada de Cabral às terras baianas, Portugal não iniciou de imediato uma ocupação maciça delas porque seria custoso e porque nelas não foram encontrados metais preciosos que justificassem o investimento – no que a coroa espanhola teve mais sorte nas terras por ela dominadas seis anos antes. Mas a ocupação do Brasil acabou sendo inevitável frente à cobiça das outras coroas europeias. Para evitar a perda do território, Portugal iniciou uma ocupação mercantil baseada no plantio da cana após a divisão do território em largas extensões que iniciavam no litoral e seguiam até os limites do Tratado de Tordesilhas no interior. Essas extensões de terra seriam administradas por capitães donatários que tinham enormes responsabilidades, mas parcas condições de manter o regime funcionando com lucro para a coroa. Diante das dificuldades por eles encontradas, a coroa portuguesa decidiu sediar um governo central na colônia, e o primeiro governador-geral foi o fidalgo Tomé de Souza, que construiu a primeira capital do Brasil – a cidade de Salvador – na capitania da Bahia de Todos os Santos. A ele se seguiram no governo da terra Duarte da Costa e Mem de Sá. Este último foi o responsável pela expulsão dos franceses que haviam conquistado a Baía de Guanabara em 1555. Ele nos interessa de perto para o que vou relatar.

Na frota de Mem de Sá com destino a Salvador vieram vários profissionais necessários à colônia, entre eles um bacharel chamado Mestre Afonso Mendes, que era o cirurgião-mor da Cidade de Lisboa. Mestre Afonso não veio para o Brasil por idealismo ou em busca de aventura. Ele provavelmente buscava no Novo Mundo uma fuga das perseguições religiosas que pessoas como ele vinham sofrendo em Portugal. Ele era um cristão-novo, um descendente dos judeus ibéricos que haviam sido forçados à conversão ao catolicismo no século XV. A alternativa para os que não se convertessem era a emigração para outros territórios. Isso não quer dizer que a conversão tornasse a vida dessas pessoas mais fácil, pois se acreditava que os judeus tinham um defeito de sangue e que jamais seriam católicos de facto. Essa crença justificou séculos de perseguições, sequestros de bens, torturas e até mortes na fogueira. A instituição responsável por todo esse sofrimento se chamava Tribunal do Santo Ofício. Existe uma suspeita de que Mestre Afonso, enquanto ainda estava em Portugal, havia sido preso sob acusação de manter práticas judaicas.

No Brasil Mestre Afonso continuou atuando como médico até falecer, provavelmente em 1577, catorze anos antes que chegasse à Bahia um visitador do Santo Ofício chamado Heitor Furtado de Mendonça. Esse homem chegou com a incumbência de dar cabo de supostos pecados cometidos pela crescente população da jovem colônia, principalmente por cristãos-novos que já se estabeleciam na terra em grande quantidade. Quando foi denunciado ao visitador, Mestre Afonso já era falecido e por isso escapou da sanha persecutória de que sua família foi vítima. Sua mulher Maria Lopes, filha do alfaiate do Duque de Bragança Fernão Lopes, foi acusada de açoitar um crucifixo, de comer carne na Quinta-feira Santa, de trabalhar no dias sagrados do catolicismo e de preparar os alimentos e prantear os mortos à moda judaica. Em seu depoimento ao visitador, ela acabou confessando suas culpas, mas alegou que tudo fazia por desconhecimento, pois era, na verdade, uma boa cristã. Admitir suas culpas foi uma sábia decisão de Maria, pois o cristão-novo denunciado que não aceitasse as culpas alegadas contra ele poderia ser preso, levado os cárceres em Portugal, torturado e até queimado vivo nos infames autos de fé – tal como pode ter ocorrido com Fernão Lopes, pai de Maria, segundo boato recorrente.

Também contra Ana de Oliveira, uma das filhas de Mestre Afonso e Maria Lopes e moradora na vila de Paripe, houve denúncia de que se comportava mal durante as missas porque conversava com outras mulheres, permanecia sentada durante a leitura do Evangelho e corria as contas do rosário a esmo, sem fazer nenhuma oração. Ana foi ainda denunciada, por Guiomar de Fontes, de supostamente haver praticado a circuncisão ritual em seus filhos, algo bastante incomum, visto que tal prática não era realizada por mulheres. Como o pai de Ana era cirurgião, talvez ele a tivesse instruído sobre os procedimentos a realizar. De qualquer forma, Elias Lipiner nos informa que prática similar não foi imputada a nenhum outro judaizante brasileiro, o que torna a denúncia contra Ana de Oliveira ainda mais assombrosa.

Denúncias contra Ana de Oliveira – ANTT (imagem 152)

Tantos foram os membros da família Mendes-Lopes denunciados ao visitador do Santo Ofício que o historiador Elias Lipiner, em sua obra Os judaizantes nas capitanias de cima (p. 145), declara que:

Segundo se depreende das confissões e denunciações que abrangem todos os membros da família, os Lopes, descendentes diretos, segundo parece, de um mártir da Inquisição, entre todos os cristãos-novos da Colônia, com mais fervor e intensidade se entregaram às práticas judaizantes, destacando-se, nesse particular, Maria Lopes e seu marido Afonso Mendes.

A filha Ana de Oliveira foi casada duas vezes, uma delas com o biscainho Gaspar de Vila Corte de Peralta, de quem teve ao menos três filhos – Maria, Branca e Sebastião. A primeira, casada com o mercador inglês Tomás Bibintão, tinha cerca de 20 anos quando foi acusada de sacrilégio e judaísmo, pelo que recebeu penas espirituais e salvou-se da morte na fogueira. Contra sua irmã Branca de Peralta não consta que tenha havido denúncia. Esta se casou com o português Antão Delgado Aires e teve com ele sete filhos: Jerônimo Aires, Maria Cordeiro Aires, Francisco Cordeiro, Antão Delgado, Isabel, Ana e Gaspar. Os dois últimos, como se percebe, receberam no batismo os nomes de seus avós, o que era um costume entre os cristãos-novos.

Todos os filhos de Branca e Antão devem ter nascido em Salvador e por lá vivido, mas ao menos Gaspar Cordeiro faleceu na cidade do Rio de Janeiro, pelo que suspeito que ele tenha se transferido para lá já adulto. Em seu assento de óbito, datado de 31 de março de 1673, ele nomeou por testamenteiros seu “filho Tomás Cordeiro e Antão Cosme”, pelo que sabemos que tinha ao menos um filho legítimo – e teve ao menos mais um chamado Antônio. Mas Gaspar teve também duas filhas afrodescendentes, uma delas filha de uma ex-escravizada que ele trouxera da Bahia, como declara em seu testamento, visto nas declarações do assento citado, transcrito na íntegra a seguir:

Óbito de Gaspar Cordeiro – declarações

Aos trinta e um de março de mil seiscentos e setenta e três faleceu Gaspar Cordeiro. Recebeu os sacramentos [e] fez seu testamento e nele pedia à santa Irmandade da Misericórdia, [de] que fora muitos anos irmão, que o enterrassem pelo amor de Deus […] a venerável Ordem Terceira do Carmo da qual era terceiro e assim foi sepultado na dita Igreja do Carmo, amortalhado no mesmo hábito. Acompanharam seu corpo o seu pároco com seus clérigos e os religiosos do Carmo. Nomeou por seus testamenteiros a seu filho Tomás Cordeiro e Antão Cosme, aos quais pediam fizessem bem por sua alma. // Declarou que tinha em sua casa uma negra por nome Mariana a qual era forra e por tal a trouxera da Bahia, da qual [tivera] uma filha à qual deixava por esmola o enxoval de [Crisma?] e roupa e tudo mais que se achar. // Declarou mais que tinha outra filha mulata por nome Marcelina, a qual é livre e forra por carta que lhe dera. // Declarou que dois mulatos que ficaram forros um forrara por ser seu neto e outro que o forrou […] de serviços que a seu pai […] e não continha mais quanto ao pio. De que fiz este assento.

Interessa registrar que no Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro existe um extenso processo de genere et moribus de 1754 (Caixa 439, Not. 1585) relativo a Gaspar de Peralta Ramos, que foi seminarista na Bahia e almejava promoção às ordens menores. Filho de José de Peralta Ramos – e por este neto de Pedro de Galegos Ramos e Maria de Peralta – e Francisca de Alvarenga de Jesus, Gaspar era natural de Paraty. No processo, inúmeras testemunhas atestaram que o candidato era limpo de sangue, sem mácula de mouro, judeu ou africano, porém encontramos dois trechos destoantes em que se declara algo diverso. No primeiro, o padre Estevão Gonçalves de Abreu declara “que não era como devia ser para o intento por [lhe] dizerem várias pessoas que havia rumor ou fama de cristão-novo e outras disseram mais que isto provinha de um fulano Bravo que [era] de Angola de quem descendiam os Peraltas e Ramos”. Em outro trecho, transcrito abaixo, a testemunha Gaspar de Azedias Machado (1712-1779) vai além e identifica por qual membro da família Peralta a mácula teria entrado, segundo informação de terceiros.

Gaspar de Azedias Machado, natural e batizado na freguesia de Inhaúma […] somente uns Peraltas, filhos de Gaspar Cordeiro, o qual casou com uma mulher, filha de uma Dona Maria, viúva de Angola, a qual padecia nota de cristã-nova e desta sorte ficaram infectos os filhos do dito Gaspar Cordeiro, pois querendo [meter] um filho […] religioso em Santo Antônio, convidou para lhe jurar nas inquirições João Batista Coelho, já defunto, o qual totalmente repugnou […] pois muito bem conhecia a mácula de seus filhos [a qual] assim não queria jurar falso, pois tinha ido a Angola e lá sabia e conhecia a nota que padecia a dita Dona Maria, cuja nota muito bem conheceu também Luzia de Albernaz, a qual sendo também convidada para o sobredito efeito, da mesma forma repugnou […]

Ainda que as denúncias sejam poucas em face das inúmeras declarações de limpeza de sangue, é interessante que ambas façam referência a pessoas que viveram em Angola, sendo uma delas um homem da família Bravo, uma conhecida família cristã-nova que tinha importantes negócios em Angola. A menção a uma viúva chamada Maria – identificada como Dona, o que lhe conferia distinção social – deixa imaginar que Gaspar Cordeiro, pai de Tomás Cordeiro de Peralta, pode ter se casado com a filha de um membro da família Bravo que veio de Angola para a Bahia no século XVII.

Tomás, que foi vereador na cidade do Rio de Janeiro e testamenteiro de seu pai Gaspar Cordeiro, foi testemunha, em 1690, de dois processos matrimoniais: de Agostinho de Miranda e Maria de Medeiros e de Antônio Ribeiro e Lourença de Brito. Visto que ele foi descrito em ambos os processos apenas como “morador no Rio de Janeiro” e não natural dessa província, supomos que ele tenha nascido na Bahia, terra natal de seu pai, e se transferido com ele para o Rio de Janeiro, onde se casou com Inês da Luz, filha de Manoel da Luz e Bárbara da Fonseca. Inês e Tomás tiveram seis filhos que estavam vivos quando ele faleceu – dois filhos ainda não identificados (um deles talvez fosse Mateus de Peralta de Azevedo) e mais Pedro, Gaspar, Bernardo e Branca, esta batizada com o nome de sua bisavó paterna, provavelmente segundo o costume já descrito. Bernardo e seu irmão Gaspar se casaram no mesmo dia – 23 de novembro de 1694 – na freguesia de Nossa Senhora da Apresentação do Irajá. Em 1743, um neto homônimo de Bernardo apresentou requerimento ao rei D. João V solicitando baixa do posto da praça no Rio de Janeiro, pelo que descobrimos que esse neto usava o mesmo sobrenome do trisavô paterno Gaspar – Vila Corte de Peralta – , embora com ordem invertida.

Gaspar, o neto, filho de Tomás e Inês, foi casado com Maria Pacheco dos Prazeres e com ela teve três filhos: João Pacheco Cordeiro, Francisco Pacheco Peralta e Antônio Pacheco Cordeiro. Sua morte deve ter ocorrido perto de junho de 1744, pois no dia 28 desse mês sua mulher e filhos passaram escritura no cartório do 2º Ofício de Notas do Rio de Janeiro para “venda da terça parte de uma morada de casas” que o falecido havia herdado de seu pai no centro da cidade. O filho João era já casado fazia dez anos com Inês Muniz Veloso de Barcelos quando seu pai faleceu e desse casamento nasceu Miguel Veloso de Carvalho – homônimo de seu avô materno, conforme costume citado anteriormente – , batizado na freguesia de Santo Antônio de Jacutinga.

Miguel Veloso, já sabemos por textos anteriores, quando solteiro engravidou a escravizada Maria, de nação Angola. O menino que nasceu foi batizado como Manoel em 1º de julho de 1776 e libertado pelo pai quando tinha cinco anos de idade. Aos 18 anos, quando já assinava como Manoel Veloso de Carvalho, ele se casou com a mestiça liberta Fermiana Maria Xavier. Manoel e Fermiana foram meus hexavós maternos. Embora fossem descendentes de cristãos-novos e escravizados, vítimas de perseguições e enormes violências no Brasil colonial, eles não precisaram mais fugir.


José Araújo é genealogista.


José Araújo

Genealogista

2 comentários

Bahia – Genealogia Prática · 1 de junho de 2024 às 11:43

[…] aqui um texto anterior em que menciono um processo de genere de um provável descendente de Gaspar Cordeiro chamado Gaspar de Peralta Ramos em que […]

Desafios – Genealogia Prática · 4 de junho de 2024 às 19:42

[…] muito extenso. Só adianto que nesse ramo há ligações com escravizados vindo de Angola, com cristãos-novos que desembarcaram na Bahia com Mem de Sá e foram perseguidos pelo Santo Ofício e com colonos de ascendência escocesa que emigraram da Ilha da Madeira para São Vicente e de lá […]

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