Durante o período colonial, certas funções administrativas, militares e religiosas eram de acesso restrito apenas para pessoas que comprovassem ser de sangue puro, ou seja, que não possuíssem antepassados de origem africana, moura ou judia. Os estatutos de pureza de sangue exigiam que se fizesse uma investigação sobre as origens familiares dos candidatos a essas funções, pelo que não era infrequente que muitos fossem rejeitados, dada a quantidade de descendentes de africanos e judeus na colônia, onde no início da ocupação do território faltavam mulheres brancas com quem os colonos portugueses pudessem constituir família segundo mandava o catolicismo, a religião oficial da Coroa portuguesa.
Demandas pragmáticas como a de conquista do território aos aguerridos povos originários levaram a Coroa a fazer vista grossa sobre súditos como João Ramalho, branco que teve várias mulheres indígenas e que, para assombro dos jesuítas, andava nu, guerreava e supostamente comia carne humana como seus sogros, cunhados e filhos. Outras necessidades pragmáticas como a de ter profissionais de saúde na colônia levaram a Coroa a fazer vista grossa a respeito da vinda de cristãos-novos, judeus convertidos ao cristianismo e seus descendentes, em cujas comunidades havia muitos e excelentes médicos, boticários e cirurgiões. Entre esses estava Mestre Afonso Mendes (1520-1577), cirurgião-mor em Lisboa que pediu permissão ao rei para partir com a frota do Governador Geral Mem de Sá, que se dirigia para Salvador, então capital do Brasil. Mestre Afonso veio com a família, e o facto de que ele apresentou o pedido para vir sugere que buscasse um lugar menos ameaçador do que Portugal, onde já houvera um grande massacre de cristãos-novos em Lisboa em 1506 e onde o Tribunal do Santo Ofício da Inquisição, instituído 30 anos depois, havia prendido vários de seus congêneres, entre eles, conta-se, seu sogro Fernão Lopes, que fora alfaiate do Duque de Bragança e acabou ardendo em uma fogueira da Inquisição.
Na colônia, Mestre Afonso tornou-se médico particular de Mem de Sá e o acompanhou em várias das batalhas que este teve de realizar pela conquista do território, cuja posse era ora ameaçada pelos nativos, ora pelos franceses. Não se sabe se o mestre cirurgião continuou a praticar o judaísmo às escondidas no Brasil, mas as denúncias feitas por seus vizinhos ao Santo Ofício sugerem que sua mulher Maria Lopes e as irmãs dela tenham mantido diversos costumes judaicos – que eram então proibidos – e nem sempre com o cuidado de ocultá-los. Também algumas de suas filhas e uma neta foram denunciadas pela mesma razão, o que tornou a família Mendes-Lopes uma das mais perseguidas pelo longo braço da Inquisição. A proximidade entre Mestre Afonso e Mem de Sá, autoridade máxima na colônia, talvez tenha evitado graves punições a sua família.
É também na família do médico particular do Governador Geral que encontramos o caso interessante de Manoel Afonso, filho do mestre, que era clérigo de ordens menores e teve uma carta de apresentação do próprio Mem de Sá indicando-o para ocupar uma vaga na capelania deixada por renúncia do capelão Jacobus Rodrigues. A capelania provavelmente lhe permitiria prestar atendimento em uma instituição religiosa ou militar. Já causa surpresa que o sangue impuro de Manoel Afonso – judeu pelos quatro costados – não o tenha impedido de chegar às ordens menores. Causa ainda mais surpresa que tenha recebido uma capelania, mas talvez possamos entender que aqui não tenha havido exatamente uma necessidade pragmática como nos casos já citados e sim o facto de que Manoel tinha um padrinho poderoso.
Teria havido um pedido de seu pai a Mem de Sá ou teria este último apenas tentado fazer um agrado a seu médico pessoal, a quem devia pagamentos por serviços realizados, como tratarei em próximo texto? Talvez jamais saibamos a razão por que Manoel Afonso se tornou capelão em Salvador, mas coisas assim se tornaram comuns no Brasil nos séculos seguintes. O documento pelo qual se confirmou a capelania do filho de Mestre Afonso pode ser lido abaixo.
Confirmação da Capelania de Manoel Afonso, filho do Mestre Afonso
D. Pedro Leitão, por Mercê de Deus e da Santa Sé Apostólica de Roma, Bispo da Cidade de Salvador da Bahia de Todos os Santos, terras do Brasil e Comissário Geral por autoridade apóstólica em todas as capitanias e lugares da dita costa e do Conselho D’El-Rei Nosso Senhor. A todos os que esta Minha Carta de Confirmação e posse virem. saúde em Jesus Cristo Nosso Senhor, que de todos é verdadeira Salvação. Fazemos saber que perante Nós apareceu Manoel Afonso, Clérigo de Ordens menores, e nos apresentou uma Carta de Apresentação do Senhor Mem de Sá do Conselho D’El-Rei Nosso Senhor e Capitão da dita cidade e seu Governador Geral nas ditas capitanias e terras desta costa do Bras, pela qual carta em nome do dito senhor, como Governador e perpétuo administrador que é do mestrado e Ordem da Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo, nos apresentou o dito Manoel Afonso a uma capelania da Sé da dita cidade que vagou por renunciação de Jacobus Rodrigues, último possuidor da dita capelania, finalmente que pela renunciação do dito Jacobus Rodrigues que em nossas mãos tem feito o apresento ao dito Manoel Afonso à dita capelania pelo melhor modo e maneira que com direito o posso fazer. E vista por nós a dita Carta de Apresentação e confiando na bondade e bom saber do dito Manoel Afonso e sendo por nós examinado, o achamos apto e suficiente para servir a dita capelania, como cumpre a serviço de Deus e descargo de nossa consciência, pelo qual por imposição de barrete que em sua cabeça pusemos, o confirmamos e com efeito o havemos por confirmado na dita capelania apresentação do dito senhor a quem o direto pertence como Mestre e Governador que é da dita Ordem e Cavalaria com a qual capelania o dito Manoel Afonso haverá o ordenado limitado na provisão geral do dito Senhor e os mais reditos e proveitos que direita e canonicamente deve haver, outrossim será obrigado a servir e residir pessoalmente na dita capelania e como o Direito requer e nós ordenamos. E logo jurou em nossas mãos aos Santos Evangelhos de ser sempre obediente a nós e a nossos sucessores canonicamente no dito Bispado entrantes e de cumprir e guardar todos nossos mandados e nossos vigários gerais, ouvidors e loco tenentes e de nunca directe nec indirecte ser contra nós nem contra nossos mandados; e de guardar o Regimento e Instrução que para bom governo e Regimento do dito Bispado fizermos e ordenarmos e mentes não houver Constituições e de cumprir e guardar as Constituições do Arcebispado de Lisboa Metropolitano assim e da maneiroa que nelas se contém; e assim jurou de guardar tudo aquilo que se contém no Capítulo ego enim de jure jurando, e por esta presente Carta mandamos em virtude de Santa obediência, e sub pena de excomunhão a qualquer clérigo ou notário que sendo requeridos pelo dito Manoel Afonso o metam de posse real e atualmente incorporando-o nela com todas as solenidades que o Direito requer e da tal posse real, atual e corporal lhe passem seus instrumentos em pública forma para guarda e conservação de seu direito. Em testemunho do qual lhe mandamos passar a presente Carta de Confirmação por nós assinada e selada de nosso selo nesta cidade do Salvador hoje, 4 de outubro. João Marante, Escrivão da Câmara a fez, ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1560 anos. O qual Manoel Afonso tomou posse da dita capelania segundo eu Manoel de Oliva, Escrivão da Fazenda vi por um instrumento de posse feito por João Marante e assinado pelo Deão e Mestre Escola e Antônio Gonçalves e Francisco de Paiva, cônegos, e Marçal Rodrigues, aos 5 de outubro do dito ano de 1560 anos.
Pedro Leitão, que assina o documento, foi bispo do Brasil. Segundo José Gonçalves Salvador (In Cristãos-novos Jesuítas e Inquisição. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1969) era notória sua condescendência em relação aos cristãos-novos, pelo que costumava fazer vista grossa às questões de limpeza de sangue.
Para saber mais sobre a vida de mestre Afonso, sua família e descendência até o Rio de Janeiro do século XX, leia Mestre Afonso Mendes: o cristão-novo.
José Araújo é genealogista.