Há algumas semanas, como resposta a uma postagem que fiz em um grupo do Facebook dedicado à Genealogia Brasileira, recebi a seguinte pergunta: “Como descubro os antepassados da minha trisavó que era escrava?”. Minha primeira reação foi responder sucintamente que não havia resposta simples para a pergunta, mas depois, refletindo a respeito de quão pouco informativo eu havia sido, decidi ser mais detalhista e complementei dizendo que, dependendo da região onde sua trisavó viveu, a colega poderia tentar localizar documentos relacionados aos proprietários dela, tais como inventários e testamentos, pois neles era comum que se informassem os nomes dos escravizados. Se essa trisavó tivesse vivido em uma região para a qual houve muita pesquisa de historiadores, talvez estes já tivessem levantado esses documentos. O restante de meu complemento foi genérico, terminando com a seguinte afirmação: a Genealogia de pessoas afrodescendentes é complexa, demanda muita pesquisa e nem sempre traz os resultados esperados.
Refletindo ainda hoje sobre a resposta que forneci e complementei, eu diria mais: se a trisavó da colega realmente foi uma mulher escravizada e nascida na África, seria quase impossível descobrir quem foram os pais dessa trisavó. Se a trisavó foi uma mulher escravizada crioula, isto é, filha de africanos, mas nascida no Brasil, poderia-se ainda alcançar a geração dos pais dela, pois talvez haja registros de batismo deles na idade adulta. As genealogias de escravizados pretos (africanos nativos) e crioulos (brasileiros nativos) são as mais complexas, pela escassez de documentos e a carência de informações de valor genealógico, tais como nomes dos pais, avós, data e local de nascimento, nos poucos documentos que se consegue encontrar. O tráfico transatlântico tratava gente como mercadoria, portanto não lhes dava reconhecimento de ancestralidade.
A situação menos desfavorável ocorreria se a trisavó da colega fosse uma mulher escravizada parda, pois haveria dois caminhos distintos a percorrer. Primeiro, ela poderia tentar descobrir a identidade da mãe da trisavó – e da mãe dela se esta também fosse uma mulher escravizada parda. Depois, considerando que a expressão parda se aplicasse a uma delas – ou ambas – , haveria necessariamente um pai branco a ser revelado e que talvez pertencesse à família do proprietário dessa mulher, afinal era comum que os senhores tivessem filhos ilegítimos com suas escravizadas. Em alguns casos, esses filhos podem ter sido reconhecidos ou perfilhados. Eu afirmei que a situação seria menos desfavorável porque, mesmo em um desses cenários, seria necessário encontrar alguma pista em documentos relacionados à época e ao local em que viveu a trisavó da colega. Em um mesmo ramo materno de minha árvore familiar tenho três dessas situações: duas que posso considerar no jargão genealógico paredes de tijolos intransponíveis e outra que considero um desafio ainda válido, ambos associados à minha tetravó Firmiana Maria de Jesus, que foi filha e neta de pessoas pardas.
A primeira situação que considero intransponível tem a ver com a avó paterna de Firmiana, que se chamava Felizarda Maria e foi descrita nos documentos encontrados como parda. Ela era filha de um homem branco e uma mulher crioula forra chamada Teresa Maria de Jesus. Esta última, por sua vez, era filha de Estevão Gonçalves Dias e Mariana de Souza, que haviam sido escravizados na propriedade do fazendeiro branco Roque Gonçalves e depois supostamente alforriados por ele. Estevão e Mariana eram, segundo os documentos, do gentio da Guiné, que era a forma como se descreviam os africanos escravizados ainda no século XVIII para distingui-los dos escravizados indígenas, que eram conhecidos como negros da terra. Não espero encontrar documentos que revelem quem foram os pais desses meus antepassados ou mesmo em que parte da África nasceram, pois o tráfico transatlântico não deve ter se preocupado em registrar essas informações.
A segunda situação que considero intransponível tem a ver com o avô materno de Firmiana, que se chamava Manoel Veloso de Carvalho e foi descrito nos documentos encontrados como pardo forro. Ele era filho de um homem branco e uma mulher africana identificada como Maria de nação Angola. Manoel foi alforriado por seu pai quando tinha apenas cinco anos de idade, mas de sua mãe nada se sabe além do facto de que fora escravizada por sua avó paterna. Talvez ela tenha morrido na condição de escravizada, mas, de qualquer forma, também não espero encontrar documentos que revelem quem foram os pais dela ou mesmo de qual parte de Angola era viera, afinal designações como nação Congo, Angola ou Moçambique tinham mais a ver com a localização do porto africano de onde essas pessoas eram embarcadas com destino à América do que com origens étnicas propriamente ditas.
A situação que ainda vejo como desafio tem a ver com a avó materna de Firmiana, que se chamava Firmiana Maria Xavier e foi descrita nos documentos como parda forra e filha de Ana Maria Xavier, também parda forra. Como afirmei antes, o uso do termo pardo(a) assinala que essas mulheres eram filhas de mulheres africanas ou de ascendência africana e de homens brancos, provavelmente relacionados às famílias de seus proprietários. Pela análise que apresentei em texto anterior, supus que Firmiana Maria Xavier tivesse nascido em 15 de janeiro de 1776 nas terras que pertenceram ao sargento-mor Francisco Sanches de Castilho e que nessas mesmas terras ela tivesse conhecido o já citado pardo forro Manoel Veloso de Carvalho, com quem se casou no segundo semestre de 1794. Algumas evidências apontam para uma grande proximidade entre esses meus antepassados e os Sanches de Castilho, entre elas os factos de Firmiana ter tido por madrinha de batismo uma filha do sargento-mor Francisco Sanches e de o pai de seu marido ter sido sepultado na casa do mesmo sargento-mor.
Embora não pareça haver documentos facilmente acessíveis sobre Ana Maria Xavier, ela foi uma mulher forra, portanto deve ter havido registro de carta de liberdade em seu benefício. O desafio agora é encontrar essa carta.
José Araújo é genealogista.