Aos vinte três dias do mês de janeiro de mil setecentos e setenta e seis anos, nesta freguesia de Santo Antônio de Jacutinga, batizei e pus os santos óleos a Firmiana, filha de Ana, parda livre, solteira, nascida a quinze do dito mês. Foram padrinhos o capitão Manoel Correa Vasques e Dona Inácia Francisca, solteira, filha de D. Inácia Maria Tavares, viúva desta freguesia. De que para constar fiz este assento. O Vigário Luiz Inácio de Pina.
Já devo ter afirmado aqui algumas vezes sobre a importância de levar em consideração os padrinhos de batismo e as testemunhas de casamento na pesquisa genealógica. Essas pessoas frequentemente eram parentes das crianças batizadas e dos noivos ou ao menos pessoas de relacionamento próximo. Em casos como o de minha sexta-avó Firmiana Maria Xavier, em cujo assento de batismo não consta o nome paterno, a identificação dos padrinhos talvez possa trazer pistas sobre a identidade de seu pai. Mas vamos antes saber mais sobre essa essa minha ascendente a antes de avançar na investigação sobre sua filiação.
Firmiana foi identificada no assento como filha de Ana, cujo sobrenome é ignorado ou não foi informado pelo vigário, que declara apenas que esta era uma mulher solteira e parda livre. Muitas vezes, estas duas últimas palavras de acepções diferentes acabam convergindo para o mesmo sentido. Se ela era uma mulher parda, podemos deduzir que ela fosse filha de uma mulher africana com um homem branco. Essa era a definição de pessoa parda, que para todos os efeitos era mestiça. Ao informar que Ana era livre, o pároco revelou que ela havia recebido a carta de liberdade de seu senhor ou do senhor de sua mãe, o que daria no mesmo. Era comum que pessoas pardas tivessem o status social de libertas. Mas quem seria o senhor que concedeu a carta de liberdade à mãe de Firmiana?
É tentador levar em consideração o nome do padrinho identificado no assento de batismo: o capitão Manoel Correa Vasques. Seu título sugere que, naquele contexto histórico, ele fosse um homem de poder e certamente tinha um plantel de escravizados. De facto, o capitão Manoel era o senhor do engenho Cachoeira, propriedade que ele havia herdado de seu pai, o doutor Manoel Correa Vasques, que foi batizado na freguesia da Candelária em 4 de agosto de 1675 e era doutor em Cânones pela Universidade de Coimbra – vem daí o título pelo qual ele era identificado nos documentos. E tem mais: o doutor Manoel era filho de Martim Correa Vasques (1627-1710), que foi fidalgo da Casa Real e Cavaleiro da Ordem de Aviz, portanto representante da mais alta elite colonial.
Doutor Manoel foi um homem de muitos relacionamentos com o sexo oposto. Oficialmente ele se casou com Maria Paes de Almeida, que faleceu em 10 de maio de 1715 sem deixar filhos. Com uma escravizada africana identificada como Teresa Correa de Jesus, de nação Mina, o doutor teve uma filha que em adulta respondia pelo nome de Inês Correa de Jesus e casou-se com Custódio de Souza. Inês e Custódio tiveram um filho chamado José, que em adulto respondia pelo nome de José Vasques de Souza e foi padre. Na sociedade colonial brasileira, ele não deveria ter conseguido se tornar padre porque tinha uma mácula de sangue – descendia de uma mulher africana – , mas quem se atreveria a negar ao neto do doutor Manoel e bisneto de um fidalgo da Casa Real e Cavaleiro da Ordem de Aviz a satisfação de sua vocação religiosa? Seu processo de habilitação sacerdotal é extenso e está disponível para consulta no arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro (Caixa 606, Notação 3667).
Finalmente, o doutor Manoel teve ao menos quatro filhos naturais, isto é, fora do casamento, com uma mulher de ascendência ignorada chamada Damásia Cordeiro. Esses filhos foram batizados como Martinho, José, Guiomar e Manoel, este nosso já conhecido capitão Manoel Correa Vasques, o padrinho de Firmiana, que foi batizado em 23 de agosto de 1728 na Sé do Rio de Janeiro. Parece que o capitão Manoel nunca chegou a se casar, pois no mapa descritivo da freguesia de Jacutinga, feito por ordem do vice-rei do Brasil Dom José Luís de Castro, registrou-se que Manoel Correa Vasques, o filho, tinha 60 anos em 1797 e era solteiro. Não houve registro de que tivesse filhos.
A ausência de um registro oficial de filhos não significa que o capitão Manoel Correa Vasques não os tivesse e, principalmente, que não tivesse filhos de suas escravizadas cuja paternidade ele nunca reconheceu, diferentemente do que fizera seu pai, que reconheceu os filhos naturais e mestiços e assim garantiu “a continuidade da casa e o nome da família“. O mesmo mapa descritivo informa que o capitão Manoel possuía aparentemente – a leitura do documento é difícil – 35 escravizadas. A mãe de Firmiana, identificada no processo matrimonial desta – exibido abaixo – como Ana Maria Xavier, pode ter sido uma escravizada do plantel do capitão que recebeu a liberdade no berço ou depois de adulta. Uma razão que pode ter contribuído para sua libertação poderia ser o facto de ela haver parido uma criança do capitão. É uma suposição que aguarda evidência documental comprobatória, e o pai de Firmiana poderia mesmo ser outro homem da mesma família, afinal não seria comum que um pai apadrinhasse sua própria filha, fosse ela legítima ou não.
Ao mesmo tempo, não podemos ignorar que há outra pista no assento de batismo de Firmiana que contribui para a interpretação de que ela tenha sido filha de um homem da elite local: sua madrinha Inácia Francisca foi apresentada como filha solteira da viúva Inácia Maria Tavares, que foi a esposa do sargento-mor Francisco Sanches de Castilho. O casal teve ainda uma filha chamada Úrsula Jacinta de Castilho, que se casou – mas não teve filhos – com o coronel Antônio de Pina, senhor do engenho de São José do Rato, o último a ser construído em Jacutinga no século XVIII. A madrinha de Firmiana, portanto, pertencia a outra família da elite local, e a escolha – ou imposição – de uma madrinha assim de relevo pode ter alguma relação com a ascendência paterna da batizanda, que suspeito estar relacionada a um dos senhores de engenho da mesma freguesia ou a um dos filhos deles.
No próximo texto abordarei a possibilidade de o pai de Firmiana ter sido um varão da família de sua madrinha – os Sanches de Castilho. Por ora, e fim de assegurar que não estou lendo muito além do que está contido nos documentos, registro que existe um estudo relacionado a uma mulher chamada Custódia, também moradora na freguesia de Jacutinga, que foi escravizada pelo já mencionado coronel Antônio de Pina, cunhado da madrinha de minha sexta-avó. Custódia teve oito filhos com o pardo Antônio Joaquim, e todos esses filhos tiveram por padrinhos de batismo pessoas da elite daquela freguesia. A autora do estudo questiona se essa frequência de apadrinhamentos por pessoas importantes teria sido uma escolha do coronel Antônio ou da própria Custódia, como forma de “fazer alianças que pudessem, além de interagir e socializar na freguesia, proteger e, quiçá, elevar o status de sua família”. De qualquer forma, a situação dos filhos – legítimos – de Custódia difere de forma importante do caso de minha sexta-avó Firmiana, que em nenhum momento teve o nome de seu pai revelado, o que sugere que ele e sua mãe Ana Maria Xavier pudessem pertencer a estratos sociais distintos.
Quer porque as pessoas pardas tivessem uma dependência material em relação aos senhores de engenho, quer porque esses senhores de engenho desejassem manter por perto seus filhos mestiços – ainda que sem necessariamente reconhecer a paternidade – , as evidências parecem convergir para a conclusão de que o pai de Firmiana poderia ser um homem branco da elite dos senhores de engenho. Resta apenas saber a qual família ele pertenceria: se à dos Correa Vasques ou à dos Sanches de Castilhos, de quem tratarei no próximo texto.
A busca continua.
José Araújo é genealogista.