Os escravos preferiam unir-se com companheiras da mesma origem étnica. Chama-se a esse fenômeno endogamia. | Mary Del Priore – Histórias da Gente Brasileira – Volume 1
A endogamia nada mais é do que o casamento entre iguais, seja a igualdade definida em termos étnicos, religiosos ou financeiros. O fenômeno não estava restrito aos escravos africanos e mesmo entre eles não se sustentou quando o tráfico escravagista se intensificou no século XIX, como afirma Mary Del Priore na obra citada.
Um conhecido exemplo de endogamia por motivos religiosos se observou entre os judeus, que tiveram uma convivência difícil – para dizer o mínimo – com as comunidades locais na Espanha e em Portugal por vários séculos. Por professarem uma religião não proselitista, só lhes restava o casamento entre os seus, fenômeno que acabou se perpetuando mesmo entre aqueles que, forçados à conversão ao catolicismo por D. Manuel, mantiveram seus costumes de forma privada – conhecidos como criptojudeus.
Quanto à endogamia por razões de poder financeiro ou domínio territorial, há o caso dos nobres, que casavam suas filhas de forma a manter ou ampliar seus domínios territoriais e financeiros. Além deles, também as famílias abastadas costumavam casar seus filhos de forma a ampliar suas posses ou talvez apenas manter os relacionamentos entre seus iguais. É provavelmente este último tipo de endogamia – a social – que creio ter encontrado em um ramo de minha árvore familiar.
O patriarca desse ramo foi Antonio Pinto Rebello (1727 – 1808), conhecido como cirurgião, de quem já falei. Embora, o ofício de cirurgião tenha por muito tempo sido considerado menor por envolver o uso de habilidades manuais, as evidências documentais sugerem que Antonio Pinto Rebello era um homem de posses, pois teve um filho – José Pinto do Souto – e um neto – José Pinto Rebello – na carreira médica. Ter um filho médico – ou padre – exigia recursos materiais que não estariam disponíveis para alguém sem posses.
No assento de batismo sua bisneta Teresa, a profissão de seu neto – José Pinto Rebello, o padrinho – foi registrada, embora o sacristão tenha deixado de informar a de seu filho – José Pinto do Souto. Esse assento é transcrito abaixo com meus destaques:
Aos sete dias do mês de dezembro do ano de 1824, nesta igreja de Nossa Senhora da Assunção e colegiada de Barcos, batizei solenemente, digo, batizou de minha [licença] e pôs os santos óleos o padre Jose de Amaral Anjo a Teresa, filha de Jose de Menezes, do bispado de Pinhel, e Theresa Amália, natural desta freguesia, sendo primeiro matrimônio da parte de ambos, a qual batizada tinha nascido a 28 do [dito] mês (sic). Neta paterna de José Pinto do Souto e sua mulher Bárbara Ribeiro, naturais desta freguesia, e pela materna neta de Isidoro de Almeida e sua mulher Ermelinda, naturais de [Terrenho], bispado de Pinhel, digo, neta [paterna] de Isidoro de Almeida e sua mulher Anna Ermelinda, e pela materna neta de José Pinto do Souto e Bárbara Ribeiro, desta freguesia. Foram padrinhos o médico José Pinto Rebello, [assistente] na Ervedosa, [e tocou] por procuração [a criança] Manoel Pinto [Sequeira] e sua mulher Rita de [Lima], desta freguesia. Foram testemunhas Antonio Duarte, sacristão nesta colegiada [] de [Araújo], desta vila. Para constar fiz este assento, dia, mês e ano ut supra.
Theresa Amália, filha do médico José Pinto do Souto e mãe da criança batizada, por sua vez, era casada com um militar. José de Menezes Sá Almeida, seu marido, foi identificado como alferes no assento de casamento deles, transcrito abaixo, com meu destaque. A carreira militar era uma opção desejada pelos jovens do século XIX, pois era meritocrática e alimentava o ideal romântico do herói da pátria.
Aos nove dias do mês de junho do ano de 1822, nesta freguesia de Nossa Senhora da Assunção e colegiada de Barcos, na minha presença e das testemunhas abaixo nomeadas, e na forma do concílio tridentino e constituição deste bispado, receberam de presente o sacramento do matrimônio, com licença [e] banhos pelo Exmo. Reverendo [] Monsenhor Bispo, José de Menezes Sá Almeida, alferes [Caçadores] do Número nove, filho legítimo de Isidoro de Almeida e D. Anna Ermelinda de Terrenho, bispado de Pinhel, e Theresa Amália Pinto, filha de José Pinto do Souto e Bárbara Theresa Ribeiro, naturais desta freguesia de Barcos, de que foram testemunhas Manoel Pinto Serqueira, e o padre Antonio Cardoso, [] desta colegiada. E para constar fiz este termo, dia, mês e ano ut supra. – o pároco Serafim Duarte dos Santos
Repare que a mãe do alferes deveria ser uma mulher de alguma distinção, pois recebeu do pároco o tratamento de Dona, o qual era reservado “a senhoras com algum relevo na sociedade, sem que isso significasse pertença à nobreza”, como explicam Queiroz e Moscatel. A distinção, no entanto, como expliquei em outro texto, era, sim, por nobreza, mas de seu marido, pois o alferes José de Menezes Sá Almeida, seu marido, pertencia à nobre linhagem dos Amado.
Todas as fontes documentais analisadas sugerem que as pessoas citadas relacionaram-se com outras de algum destaque social na região, o que corrobora a interpretação de que seus relacionamentos foram de alguma forma orientados pelo princípio da endogamia social.
José Araújo é linguista e genealogista.
1 comentário
Complementaridade – Genealogia Prática · 26 de abril de 2021 às 12:12
[…] filha de Joana Maria de Jesus e neta de Antônio Soares da Silva. Ocorre que, por conta da notável endogamia praticada por essas famílias, Águeda seria também bisneta do mesmo Francisco Antônio Pereira […]
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