É comum acreditar que famílias estabelecidas há séculos no Brasil tenham em sua composição genética elementos dos três grandes grupos formadores: o indígena, o europeu e o africano. Pelo mesmo raciocínio, isso não ocorreria em famílias estabelecidas mais recentemente, por volta do século XX, por exemplo, nas quais um desses elementos poderia existir de forma exclusiva – caso de minha família paterna. Mas a realidade é mais complexa do que pode parecer, pois esse raciocínio se baseia na crença de que os elementos indígena e africano (escravizado) estavam presentes apenas no Brasil. Como talvez você já saiba – ou deva ter deduzido – o raciocínio está equivocado e precisa ser desconstruído.

Para desconstruí-lo, é necessário entender que a escravidão – de negros, principalmente, mas também de outros povos – é um fenômeno antigo no Velho Mundo. Antes que os africanos fossem escravizados para o trabalho nas lavouras americanas, eles já eram explorados nas ilhas atlânticas portuguesas e mesmo no continente. E a miscigenação ocorreu em ambos os lados do Atlântico, como descobriram, com surpresa, após se submeterem a testes de ancestralidade genética, portugueses que acreditavam ser puramente brancos e europeus.

O facto é que mesmo em Barcos, uma pequena aldeia do concelho de Tabuaço, em Viseu, no centro-norte de Portugal, é possível encontrar vestígios documentais dessa presença africana. O assento de batismo abaixo – Registros Diocesanos de Lamego, 1529-1963, FamilySearch – traz a evidência incontestável:

Aos sete dias do mês de julho de mil setecentos setenta e seis anos, nesta paroquial igreja e colegiada de Nossa Senhora da Assunção desta vila de Barcos, e na forma do Concílio Tridentino, e com licença, batizou e pôs os santos óleos solenemente o reverendo António Nunes, ecônomo nesta colegiada, a Maria, que nasceu a vinte e nove dias do mês de junho próximo passado, pelo meio-dia, filha de Antónia, solteira, mulata e escrava de Dona Clara Josefa de Azeredo, viúva do doutor Luiz José de Almeida. Não deu pai à dita menina e foram padrinhos Álvaro Pinto e Maria Josefa de Bastos, solteira, ambos desta dita vila. E foram testemunhas o mesmo padre António Nunes e o padre José de Gouveia Cardoso, sacristão. E por verdade fiz este termo de assento, que assinei dia, mês e ano ut supra.

Embora metade de minha família paterna seja oriunda da pequena Barcos, a batizada não foi minha antepassada direta. Talvez um de seus descendentes tenha se unido a um de meus tios ou primos, o que desconstruiria a suposição de uma família de herança puramente europeia. E se revelaria mais uma curiosidade em minha árvore já tão rica em casos fantásticos e personagens românticos e contestadores.


José Araújo é linguista e genealogista.