A quantos esta minha Carta vierem faço saber que no livro dos Registros dos Ofícios, Padrões e Doações do ano de mil quinhentos e trinta e quatro, que está em minha Chancelaria, é escrita e registrada uma Doação que o teor tal é: Considerando eu quanto o serviço de Deus e meu proveito e bem dos meus Reinos e Senhorios e dos naturais e súditos deles, é ser a minha terra e Costa do Brasil mais povoada do que até agora foi, assim para se nela haver de celebrar o Culto e Ofícios Divinos e se exaltar a nossa Santa Fé Católica, com o trazer e provocar e ela os naturais da dita terra, infiéis e idólatras, como pelo muito proveito que se seguirá a meus Reinos e Senhorios, e aos naturais e súditos deles se a dita terra se povoar e aproveitar, houve por bem de mandar repartir e ordenar para delas prover aquelas pessoas que me bem parecer, pelo que havendo eu respeito aos muitos serviços que tenho recebido e ao diante espero receber de Pero do Campo Tourinho, e por folgar de lhe fazer mercê de minha própria vontade, pelo meu poder Real e absoluto, sem mo ele pedir, nem outrem por ele, hei por bem e me apraz de lhe fazer, como de feito por esta presente Carta faço mercê e irrevogável doação entre vivos, valedora deste dia para todo o sempre, de juro e herdade, para ele e todos seus filhos, netos e herdeiros e sucessores que após ele vierem, de 50 léguas de terra na dita Costa do Brasil.

O trecho apresentado está na carta de doação que o rei de Portugal D. João III fez, em 27 de maio de 1534, da Capitania de Porto Seguro a Pero do Campo Tourinho, navegador e comerciante de Viana do Castelo. Porto Seguro foi a terceira das capitanias que o rei doaria a “vassalos seus de sangue e merecimento, em que cabia esta confiança, os quais edificaram suas povoações ao longo da costa nos lugares mais convenientes e acomodados que lhes pareceu para a vivenda dos moradores“, como declararia outro Pero, o de Magalhães Gandavo (1540-1580), em seu Tratado da Terra do Brasil.

Após receber seu lote, Pero do Campo vendeu todas as suas posses e comprou duas naus e duas caravelas para, no fim daquele mesmo ano, zarpar de Portugal para Porto Seguro com familiares e 600 outras pessoas que com ele vieram para povoar a terra. Sua frota fez escala nas Ilhas Canárias, o que pode ter despertado suspeitas em Isabel, a imperatriz espanhola, de que ele pudesse estar a caminho de terras que pertenciam a sua coroa. Essa suspeita parece ter sido a razão para a carta que ela tratou de enviar, em maio de 1535, a D. Luis Sarmiento, seu embaixador em Lisboa:

Por la isla de La Gomera, que es en Canaria, casi al fin del año pasado, pasó una armada del Serenisimo Principe Rey de Portugal, nuestro hermano, en que iban dos carabelas y dos naos gruesas y en ellas seiscientos hombres y mucha parte dellos con sus mujeres y por capitan un Pedro del Campo, vecino de Viana, y algunos dicen que van poblar al Brasil.

Em meados de 1535, Pero do Campo, sua família e seus 600 colonos chegaram no seu destino e se instalaram no local onde hoje está o centro histórico de Porto Seguro. Na região, onde viveria por onze anos, ele fundou sete vilas e, tal como ocorreria com os demais donatários, teve algum sucesso e enfrentou muitas dificuldades, inclusive ataques dos nativos, pelo que deixou de pagar os impostos devidos à coroa portuguesa.

Fonte: Wikipédia

Além disso, era um homem genioso e boquirroto, que não tardou a fazer inimigos por todos os lados, mesmo na Igreja. Em setembro de 1543, foi denunciado ao Santo Ofício por heresia e blasfêmia por conta de diversas declarações contra o clero e os costumes católicos. No fim de 1546, os homens mais importantes da capitania o traíram e prenderam. No início do ano seguinte, foi enviado a Portugal, acorrentado, em uma de suas próprias naus, para ser julgado pela Inquisição de Lisboa.

Pero Tourinho foi julgado em liberdade em um processo que durou três anos e cujos registros incompletos se encontram nos arquivos da Torre do Tombo. Embora não tenha sido condenado, empobreceu e morreu em Portugal, em 10 de outubro de 1553, sem jamais ter retornado à capitania, que passou a sua esposa e depois foi doada a um filho.

Pero do Campo Tourinho foi um dos filhos de Gil Pires Tourinho e Branca Quesado. Seu irmão Estevão Gil Tourinho é antepassado de minha tetravó materna Maria Tereza da Paz (1791-1855). Não foi Pero, até onde sei, meu único parente a ser acusado pelo Santo Ofício, pois a neta de seu irmão Estevão também está no rol dos acusados. Mas isso é assunto para o próximo texto.

Para conhecer mais da história de Pero Tourinho e dos outros donatários, leia esta obra.


José Araújo é genealogista.


José Araújo

Genealogista

1 comentário

Felícia – Genealogia Prática · 4 de fevereiro de 2021 às 09:25

[…] saber que tive parentes em ambos os lados do Santo Ofício: no dos acusados, como Felícia e Pero do Campo; e no dos acusadores, como já publiquei em outro […]

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