Entre as fontes documentais possíveis para pesquisa genealógica, já mencionei os assentos paroquiais, as fotografias e cartas familiares, os registros militares, os periódicos e as cartas régias. Todas são consagradas, embora não exclusivas para esse tipo de pesquisa, pois há muitas outras que ainda não discuti aqui no blog.
Porém existe ainda uma fonte insuspeita: a literatura. Por sua natureza normalmente associada à livre criação e expressão de sentimentos, seria fácil relegar a produção literária a um grupo de textos inúteis para uma pesquisa que se quer objetiva e exata no que diz respeito a nomes, datas e locais.
A literatura, no entanto, também pode fornecer pistas sobre nossos antepassados. É exatamente isso o que pretendo provar com o poema abaixo, escrito por José Pinto Rebello de Carvalho, primo de minha trisavó paterna sobre quem já tratei em alguns textos – especialmente neste e neste.
O Adeus d’um proscrito
Rompe a aurora: adeus, esposa…
Oh! cruel adeus extremo!
Sinto o compassado remo
Estas águas já cortar;
Mais não posso demorar-me
Eis a hora d’embarcar.Lá m’espera sobre as ondas
O veloz Baixel britano:
Vamos ver se no Oceano
Doce abrigo posso achar.
Mais brandura que na terra
Lá talvez hei-de encontrar.Vou fugir fúrias que infestam
Desgraçada Lusitânia:
Na feliz, culta Britânia
Meigo asilo encontrar:
Pai, irmãos, amigos, tudo
É forçoso abandonar.Ah! não chores, que meu peito
Vil remorso não oprime:
Culpas não tenho; é meu crime
Um nobre, um livre pensar.
É-me glória a fatal lista
Dos proscritos aumentar.Baixos, cruéis instrumentos
Da Ignorância e da Maldade,
A que negra atrocidade
Nós os vimos entregar!
Tão execrandos delitos
É tormento recordar.Mas oh! dor, onde me levas?
Fugir só cumpre: é já dia..
Dos Nautas a gritaria
Vai as velas levantar.
Parto, adeus oh! Esposa oh! Pátria…
Não posso mais que chorar.
O poema deve ter sido escrito pouco antes do exílio a que José foi forçado por apoiar a causa liberal de nosso d. Pedro I contra a causa absolutista de seu irmão d. Miguel – ambos filhos de d. João VI e Carlota Joaquina. A derrota dos liberalistas obrigou vários intelectuais a buscar refúgio na Inglaterra, país a que se faz referência no poema em versos como O veloz Baixel britano (citação ao barco em que embarcou para a Inglaterra) e Na feliz, culta Britânia.
José deixa claro que teve de fugir de sua Desgraçada Lusitânia não por haver cometido um crime (Culpas não tenho), mas pelas ideias que defendia (meu crime Um nobre, um livre pensar). O destino inicial de José Pinto e de outros perseguidos parece ter sido a cidade portuária de Plymouth, pois, segundo o pesquisador Fábio Alexandre Faria, era onde “a maioria dos emigrados estava concentrada, ainda no decorrer do ano de 1828”.
Ainda segundo esse pesquisador, foi em Plymouth que José Pinto redigiu, entre novembro de 1828 e abril de 1829, O Padre Malagrida ou a Tesoura: Periódico Político e Literário, cujo título era uma homenagem irônica e provocadora ao bispo de Viseu, D. Frei Alexandre Lobo, e a Agostinho Luís da Fonseca, alfaiate de profissão, ambos miguelistas. Já em Londres, entre 1831 e 1832, José redigiu O Pelourinho, periódico publicado de forma semiclandestina no qual atacava Pedro IV – ex-imperador do Brasil.
Dados de interesse genealógico surgem, de fato, em outros versos. José era casado com Maria José Adelaide Ferreira Pinto, com quem teve ao menos uma filha. Nenhum registro foi encontrado sobre elas até o momento, mas o poema sugere – ainda que a filha não tivesse nascido até momento do embarque – ao menos que sua esposa não o tenha acompanhado na viagem para o exílio, pois ele se despede dela no momento da partida: Rompe a aurora: adeus, esposa… e ainda Parto, adeus oh! Esposa oh! Pátria… .
A título de curiosidade, descobri que o poema foi musicado e gravado pelo cantor angolano-português Luís Cília (1943 – ), que também sofreu a experiência do exílio. Ouça a gravação abaixo.
José Araújo é linguista e genealogista.
4 comentários
Barcos | Genealogia Prática · 12 de agosto de 2017 às 09:51
[…] os proscritos fugiram de barco, e José Pinto deve ter estado entre eles, pois registrou em poema o momento de sua […]
Genealogia Prática - Equívocos · 11 de novembro de 2017 às 06:59
[…] de fontes, principalmente de assentos paroquiais, mas não restrita a elas, como já expliquei em outro texto. Uma fonte ainda não abordada, entretanto, são as próprias pesquisas genealógicas, […]
Genealogia Prática - Relato · 27 de janeiro de 2018 às 04:00
[…] Essa ampliação dos olhares sobre a História se reflete aqui no blog, por exemplo, no recurso a textos literários e jornalísticos produzidos por – ou a respeito de – meus parentes como forma de […]
Genealogia Prática - Esportistas · 8 de setembro de 2018 às 10:00
[…] ricas quanto as nossas. E é graças a essas fontes que podemos hoje descobrir que eles também escreveram poesia, foram (ou não foram) religiosos e até tiveram posições políticas marcadas que lhes causaram […]
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