Neste dia nacional de celebração da Consciência Negra cabe lembrar que, segundo o censo de 2022, mais de 92 milhões de brasileiros (45,3% da população) identificaram-se como pardas, reconhecendo dessa forma que descendem de povos originários – africanos e indígenas. Levantamento feito pelo laboratório em cuja base de dados encontram-se majoritariamente os resultados de testes genéticos contratados por brasileiros, revelou que esse componente africano corresponde a 10,95% do DNA nacional e que Bahia (23,05%), Sergipe (16,90%) e Maranhão (15,96%) são os estados onde predomina essa herança.
Esse componente africano experimentou um extraordinário aumento populacional nos três séculos de vigência do regime escravocrata em terras brasileiras: cerca de cinco milhões de homens africanos jovens, mas também mulheres jovens, crianças e idosos de ambos os sexos foram desembarcados nos portos brasileiros e chegaram a compor a maior parte da população em várias cidades, como foi o caso do Rio de Janeiro, capital desde 1763 e destino de quase um milhão de africanos traficados. Lamentavelmente, essa imensa população africana, depois crioula (nascida no brasil de pais africanos) e parda (mestiça), enquanto mantida na condição de escravizada, sofreu um processo brutal de despersonalização, como descobrirá qualquer afrodescendente que se dedique a construir sua árvore genealógica e se depare com a falta de documentos ou com a existência de documentos em que seus antepassados são conhecidos apenas por um nome.
Quando muito – e com muita sorte – se pode descobrir uma antepassada chamada Maria e identificada como sendo de nação Angola, pelo que se saberá que era africana e pode ter sido embarcada no porto de Luanda com destino ao Brasil. Essa mulher admirável foi uma sobrevivente da extenuante caminhada até o porto africano, da longa espera pelo navio em algum escuro e infecto armazém e do ambiente terrivelmente insalubre do tumbeiro, o navio que a trouxe amontoada com centenas de outras pessoas da África até um porto brasileiro. Ela pode ter sido desembarcada na Praia do Peixe, no centro da cidade do Rio de Janeiro, de onde foi conduzida à alfândega para o recolhimento de impostos e depois para o lazareto, onde foi tratada da desnutrição e de alguma doença de pele contraída na África ou no tumbeiro. Quando recuperou algum peso e viço na pele, a angolana Maria foi conduzida ao leilão onde teve seu corpo inspecionado como se fosse um animal e foi comprada.
No momento em que foi vendida, ela já trazia em seu corpo a marca do traficante africano que a vendera e a de quem a traficou para o Brasil, ambas feitas com ferro incandescente. Ela receberia ainda a marca de seu senhor, para que não restasse dúvida de que seu corpo tinha um proprietário e de que ela era apenas uma mercadoria que poderia ser revendida ou transmitida em testamento, da mesma forma que se transmitiriam terras, gado e joias. Esse senhor talvez tenha sido o cidadão João Pacheco Cordeiro, que pode tê-la destinado em vida ou em testamento a sua esposa Inês Moniz de Barcelos. Esse casal teve um filho chamado Miguel Veloso de Carvalho, que na juventude, quando ainda era solteiro, gerou um filho em Maria, como ocorreu milhares de vezes com outras escravizadas pelo Brasil. Esse filho, batizado como Manoel em 1º de julho de 1776 na freguesia fluminense de Santo Antônio de Jacutinga, nasceu escravizado e foi libertado aos cinco anos pelo pai, de quem passou a usar o sobrenome composto. A seguir pode-se ler o fragmento da carta de liberdade de Manoel Veloso de Carvalho.
Saibam quanto este público instrumento de escritura de liberdade virem que no ano de nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil setecentos e oitenta e um ano, aos vinte e quatro dias do mês de julho do dito ano, nesta cidade do Rio de Janeiro, em meu escritório apareceu presente Miguel Veloso de Carvalho, pessoa reconhecida das testemunhas abaixo nomeadas e assinadas, e por ele me fez dito em presença das mesmas testemunhas que é senhor e possuidor de um pardo por nome Manoel, seu filho, que tivera, em tempo que ele outorgante era solteiro, de uma escrava sua por nome Maria, nação Angola. E por esta razão, por este instrumento, e via melhor de Direito dava alforria e liberdade de hoje para todo sempre ao dito pardo Manoel e ficaria forro e liberto, isento de toda a escravidão e cativeiro como se forro nascesse de ventre livre, e poderia ir para onde muito bem lhe [parecesse] sem [pessoa alguma o possa impedir] por estar forro e liberto pela razão sobredita, pelo que pedia a Justiça de sua Majestade, que Deus […] e em virtude da mesma se obrigava a sua observância em fé da verdade me pediu lhe fizesse este instrumento nesta nota que lhe […] em tabelião […] e nome do libertado […] ausente ao dezoito deste em que assinou com as testemunhas presentes […] Rodrigues de Carvalho, morador no Engenho Novo e João Pereira Gonçalves Teixeira, soldado da Artilharia, reconhecidos por mim tabelião Simão Pereira […], digo, Miguel Veloso de Carvalho e Manoel Rodrigues de Carvalho, João Pedro Gonçalves Teixeira. A qual escritura se acha lavrada em o livro atual de minha nota […]
Da angolana Maria nada mais se descobriu até o momento e talvez não se descubra nada mais. O apagamento da memória dessas pessoas é um facto. Mas é motivo de regozijo que se tenha ao menos tomado conhecimento de sua existência e consciência do que ela pode ter enfrentado em sua vida, que pode não ter sido longa. Fica aqui meu reconhecimento a Maria Angola, minha oitava-avó materna.
A página Livros deste site contém sugestões de leitura que podem ser do interesse de brasileiros afrodescendentes ou não.
José Araújo é genealogista.