Aos vinte e oito dias do mês de março de mil setecentos e trinta e cinco, nesta freguesia do Campo Grande, batizei e pus os santos óleos, digo, batizei sub conditione, por me dizerem que fora batizada em casa, por Manoel Pacheco Calheiros, e como ele não quis vir a minha presença, nem me certificaram pessoas fidedignas, somente escravos, batizei e pus os santos óleos a Inácia, filha de Garcia Rodrigues e de sua mulher [Florência] Pacheco, pretos escravos de Manoel Pacheco Calheiros, morador no Cabossu desta freguesia. Foram padrinhos Estêvão, preto barbeiro, escravo de Roque Gonçalves Dias, e Ângela Barbosa, preta de casa de Fabiano Gomes, homem pardo, e entrevado, morador no Cabossu. E por verdade fiz este assento que assinei dia e era ut supra.

O assento de batismo transcrito acima informa que a menina Inácia pode ter tido um nascimento tumultuado e talvez não tenha tido uma vida muito melhor. Para começar, ela já nasceu dentro do regime escravocrata e era filha de dois escravizados identificados como pretos, logo provavelmente nascidos na África. Além disso, seu primeiro batismo foi realizado pelo proprietário de seus pais, o que talvez sinalize que ela estava em perigo de morte e não haveria tempo para esperar a chegada do pároco. O assento informa ainda que o pároco registrou esse batismo sub conditione por falta de testemunhas confiáveis que atestassem que Manoel Pacheco Calheiros tinha cumprido os mínimos requisitos para que seu ato contasse como um batismo válido para a Igreja. Finalmente, o senhor dos escravizados não quis comparecer perante o pároco para revelar o que fizera.

Detalhada a turbulenta chegada dessa menina à freguesia de Campo Grande, na área rural da cidade do Rio de Janeiro, chamo a atenção para outro detalhe em seu assento de batimo: as ocupações de seus padrinhos. A madrinha Ângela Barbosa, também africana (preta) como seus pais, foi descrita como da casa de um “homem pardo, e entrevado” chamado Fabiano Gomes. Pela descrição, sabemos que o senhor de Ângela era também um homem afrodescendente, porém mestiço, pelo que quase podemos supor que fosse filho (ou neto) de uma mulher preta com um homem branco. Interessa destacar que naquele período em que a escravatura era um regime em ascensão, a posse de escravizados não era rejeitada por pessoas que descendiam de escravizados. Na verdade, essa posse era algo trivial para quem dispunha de recursos e era livre, pois não era esperado que pessoas nessas condições precisassem trabalhar. Ângela deveria realizar trabalhos domésticos na casa de Fabiano.

O caso do padrinho de Inácia é ainda mais interessante. Ele é descrito como preto, portanto de origem africana, e barbeiro. Trata-se de um ofício pouco valorizado na época por não exigir muito conhecimento, em geral relacionado ao corte de cabelos e à aplicação de sanguessugas para cura de doenças em um Brasil ainda carente de médicos formados. Por ser um ofício de pouco prestígio social, era executado quase que exclusivamente por pretos ou pardos, fossem ainda escravizados ou já libertos. Apesar do desprestígio social da atividade, ela compensava pela relativa autonomia que dava ao escravizado, que poderia circular livremente, garantir seu sustento e até morar fora da casa de seu senhor, desde que pagasse a este a renda diária combinada, que costumava ser alta.

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Alguns escravizados que trabalhavam nessas condições conseguiam acumular parte da renda que podiam manter para si e até comprar a própria liberdade. Nesse cenário, o padrinho de Inácia talvez se diferenciasse dos outros pretos daquela freguesia rural e pode mesmo ter conquistado a própria liberdade. Se foi essa a história de sua vida, Estêvão deve ter conquistado a condição de preto forro entre 1735 – ano do batismo de Inácia – e 1741, pois constatei que, em junho de 1742, dois ex-escravizados pretos do mesmo Roque Gonçalves Dias – citado no batismo de Inácia – chamados Estêvão e Mariana, já casados, batizaram uma filha chamada Antônia, como lemos no assento abaixo.

Aos três dias do mês de junho de mil e setecentos e quarenta e dois anos, batizou o reverendo padre Manoel Gonçalves de Souza, sacerdote do hábito de São Pedro, morador nesta freguesia, com licença minha, nesta igreja de Nossa Senhora do Desterro do Campo Grande, a Antônia, filha legítima de Estêvão Gonçalves, preto forro, e de sua mulher Maria de Souza, e logo, digo, morador no lugar do Veigas desta dita freguesia, e logo lhe pôs os santos óleos. Foram padrinhos Francisco Marcelino Freire, homem solteiro, morador no lugar do Bangu, e Úrsula Pinto, parda forra moradora no lugar do Retiro, também solteira, todos desta dita freguesia. De que fiz este assento que assinei.

Estêvão e Mariana tiveram mais nove filhos entre 1747 e 1769 – Teresa, Manoel, Eugênia, José, Joaquim, João, Maria, Jerônimo e Silvestre. Acredito que essa grande prole, nascida em liberdade em plena vigência do regime escravocrata, possa ter tido uma vida relativamente menos sofrida que a dos outros filhos de africanos na mesma freguesia rural de Nossa Senhora do Desterro do Campo Grande. Penso que essa possa ter sido a situação porque temos evidências de que na década de 1750 Estêvão era já também senhor de escravizados como João e Vitória, casados em maio de 1748, conforme assento matrimonial transcrito abaixo, e depois pais de Romão (batizado em 1749), Bartolomeu (1751), Agostinha (1753) e Anastácia (1757).

Aos vinte e seis dias do mês de maio de mil setecentos e quarenta e oito, pelas doze horas do dia, nesta freguesia de N. Sra. do Desterro do Campo Grande, onde os contraentes [são] moradores, feitas as admoestações na forma do Concílio e constituições deste bispado, sem que houvesse impedimento algum, depois de confessados e […] na doutrina cristã, celebraram, em presença minha, os sacramentos do matrimônio, com palavras de presente, João e Vitória, ambos do gentio de Angola, escravos de Estêvão Gonçalves, preto forro desta freguesia. Foram testemunhas José Furtado de Mendonça e Domingos […] assistentes no sítio do Guandu desta freguesia. E tiveram bênçãos. De que fiz este assento que assinei.

As evidências sugerem que esse meu antepassado direto, nascido na África e trazido para o Brasil pelo cruel e lucrativo tráfico transatlântico de seres humanos, pode ter conquistado a liberdade e experimentado uma ascensão social na colônia portuguesa onde foi obrigado a viver. Espero um dia conseguir encontrar sua carta de liberdade para ratificar essa interpretação.


José Araújo é genealogista.