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Este é o terceiro texto da série que dedico à proposta de uma Genealogia que vá além do simples inventário de nomes, datas e lugares para recriar, com base em fontes primárias – relatos de viajantes, cartas – e secundárias – estudos acadêmicos – , um relato da vida cotidiana de nossos antepassados. Neste texto, sigo abordando o relato do viajante Richard Flecknoe, que visitou a cidade do Rio de Janeiro em meados do século XVII. Aqui trato da cautela que se deve ter ao recorrer a fontes como os relatos de viajantes, pois eles pintam um quadro da vida social de nosso passado com as tintas das culturas desses observadores, o que em geral dava margem a percepções enviesadas e carregadas de preconceito.
Na epístola sobre sua viagem ao Rio de Janeiro, Flecknoe se dedica principalmente à descrição da geografia, da flora e principalmente da fauna da terra que o recebeu. Poucas são as passagens em que ele se dedica à descrição dos cariocas, que naquele momento já poderiam ser uma população mestiça, porém ainda com componentes raciais – indígenas, europeus e africanos – bem distintos. No trecho em que ele descreve a técnica de extração do suco da cana para produção de açúcar, por exemplo, ele sugere o risco que essa atividade representava para os negros que trabalhavam no processo. O uso do termo negro, no entanto, não deixa claro se ele se referia a escravizados africanos – o que seria mais provável – ou a trabalhadores indígenas, que eram conhecidos como negros da terra.
E esses moinhos, durante a estação da fabricação do açúcar, trabalham tanto de dia quanto de noite, sendo o trabalho de aplicar imediatamente as canas no moinho tão perigoso que, se por sonolência ou descuido, a ponta de um dedo for apanhada entre os cilindros, inevitavelmente todo o corpo o seguirá. Para prevenir que isso ocorra, o negro ao lado sempre mantém um machado pronto para cortar o braço, caso tal desgraça ocorra.
Qualquer que seja a interpretação do termo por ele empregado, não resta dúvida de que o trabalho realizado era penoso e representava o risco de uma mutilação permanente. Se considerarmos que naquela época a colônia contava com poucos médicos, a amputação de um braço que ficara preso entre os cilindros da moenda de cana podia representar uma morte certa pela hemorragia decorrente do trauma.
Em outro trecho, no entanto, Flecknoe não deixa dúvida que é aos indígenas que ele se dedica. Chamando-os de selvagens, eles os apresenta como criaturas animalizadas, de aparência grotesca e privadas de senso moral, o que explicaria o fato de andarem nuas e praticarem a antropofagia – no texto apresentada como canibalismo. Para Flecknoe, os indígenas teriam valor apenas por sua força bruta, pelo que fica implícito que eles apenas existiriam para servir aos colonizadores.
Dos nativos ou habitantes, o que direi senão que, como diz João Baptista de Porta, se toda nação tem semelhança com algum animal, certamente esses brasileiros são mais semelhantes a asnos, lentos e fleumáticos, in servitutem nati, e apenas aptos para o labor e a servidão, razão pela qual a natureza talvez tenha provido aquele país sem cavalo ou asno, nem qualquer besta de carga ou fardo além deles mesmos. Contudo, são antes baixos que robustos, com corpos largos e pernas curtas, olhos pequenos, de compleição pálida e doentia, feições desagradáveis, com cabelos negros e oleosos, nem cacheados, nem pendentes, mas caindo de forma desordenada em torno das orelhas, indo a maior parte do tempo completamente nus, tanto homens quanto mulheres, com apenas algum trapo para cobrir suas partes íntimas, as quais jamais desejaríeis ver. Ficaríeis tão enojados com o restante, eles sendo todos cristãos, mas tais que me fazem lembrar daquela sentença da Sagrada Escritura: homines et jumenta salvabis Domine, que o Senhor salvará tanto homens quanto bestas, pois seguramente eles são ambos, não tendo inteligência suficiente para cometer vícios engenhosos, nem temperança suficiente para se abster dos brutais. E assim muito se diz sobre aqueles que vivem entre os portugueses, entre os quais e os outros selvagens imagino haver tanta diferença quanto entre bestas selvagens e domesticadas. Tampouco posso acreditar no que se diz sobre sua ferocidade, embora acredite em tudo que se diz sobre sua feridade, como o fato de comerem uns aos outros, e de não terem sequer uma palavra em sua língua que signifique Deus, rei ou lei, pois se fossem tão ferozes quanto se relata, certamente nunca teriam cedido sua terra tão docilmente aos portugueses, nem os permitiriam desfrutá-la tão pacificamente como o fazem.

Se ignorarmos o preconceito explícito nas palavras do viajante inglês, pode-se deduzir que a significativa presença dos indígenas – que, no entanto, já vinham sendo dizimados pelas doenças do branco – se impunha como uma ameaça aos colonos, que temiam seus ataques e a ameaça de serem capturados e devorados por eles. Esse temor implícito no texto deveria ser muito real para os cidadãos da cidade naquele tempo, o que pode colaborar para o conhecimento do que mais atemorizava os cariocas setecentistas.
José Araújo é genealogista.