Descobrir um ramo da árvore genealógica que se liga a uma família tradicional e que tinha poder e posses nos séculos passados é uma grande sorte para quem dá os primeiros passos na pesquisa. E a razão para isso é que tais famílias provavelmente tiveram sua genealogia estudada por grandes mestres como Pedro Taques, Silva Leme, Rheingantz e outros. O acesso às obras desses mestres economiza incontáveis horas de pesquisa em arquivos públicos e mesmo em bases de dados como o FamilySearch, onde, aliás, podem-se até encontrar as árvores completas dessas famílias tradicionais aparentadas. Mas nem sempre se deve ir com muito entusiasmo ao pote das genealogias das famílias tradicionais e poderosas.
A razão para isso é que nem sempre elas são completas e, quanto mais se retrocede pelos séculos, maiores são as chances de algum filho ter sido deixado de fora ou mesmo de ter havido uma tentativa de apagamento por disputas ou incidentes que possam ter gerado risco de trazer desonra ao bom nome da família. Aqui, novamente, é preciso contar com a sorte, como passo a narrar em caso que creio ter descoberto por esses dias e tem relação indireta com um ramo de minha família materna.
O caso em questão envolve descendentes do português Diogo Álvares Correa, que quando jovem sobreviveu a um naufrágio na Bahia e passou a viver entre os indígenas, que lhe deram o apelido de Caramuru. Com a indígena Paraguaçu, Diogo Caramuru teve uma descendência mestiça que é considerada um tronco fundador do povo baiano e que foi descrito no “Catálogo genealógico das principaes famílias” de Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão (1695-1764), um pilar da Genealogia no Brasil.
Na descendência de Caramuru e Paraguaçu chegamos a Catarina Fogaça, que era também descendente direta do fidalgo Garcia d’Ávila, fundador da Casa da Torre, um imenso latifúndio que se tornou símbolo do poder econômico e político no sertão nordestino. Catarina casou-se em 23 de junho de 1659 com Vasco Marinho Falcão, cuja família pertencia à elite política baiana que controlava terras, cargos e homens armados. Desse casamento entre famílias importantes, Jaboatão (p. 88) dá notícia de duas filhas: Leonor Pereira Marinho e Isabel d’Ávila Marinho, que é com quem damos início ao relato de um drama familiar de enormes proporções.
Tudo começou em 2 de janeiro de 1678, quando o patriarca Vasco Marinho era já falecido e a jovem Isabel decidiu fugir para se unir a Manoel Pais da Costa, homem que não estava à altura da importância social dela. Os jovens se casaram dez dias depois no Convento do Carmo, em Salvador. O ato teve potencial de afrontar a honra e a fortuna da família e por isso Catarina Fogaça e sua mãe Leonor Pereira trataram de acusar Manoel Pais de rapto na tentativa de anular o casamento indesejado.
O caso chegou ao Tribunal da Relação da Bahia e à Coroa portuguesa, mobilizando desafetos e aliados poderosos. Isabel acabou formalmente deserdada e proscrita, mas o drama teve impacto também na vida de sua irmã Leonor, que foi rapidamente casada com o próprio tio Francisco Dias d’Ávila a fim de preservar o patrimônio familiar. Manoel Pais foi condenado ao degredo e Isabel faleceu em 1704, aparentemente sem filhos e vivendo em condições muito mais modestas do que as esperadas para sua origem aristocrática.
Embora eu tenha ramos ascendentes baianos até mais antigos, as pessoas nomeadas não parecem ter relação direta com minha família, até onde consegui descobrir. A relação, como já declarei, é indireta. E ela foi descoberta no processo de colaboração com meu primo Miguel, de quem falei no texto anterior. Como declarei naquele texto, Miguel encontrou um processo incompleto de diligência do Santo Ofício, datado de 1734, para um Pedro Dias de Seabra, que era irmão do trisavô de meu tetravô português homônimo.
Esse Pedro candidato ao Santo Ofício era natural da freguesia de Duas Igrejas, no Porto, e nasceu em 14 de outubro de 1690 no lar de Antônio de Seabra e Catarina Gonçalves, como informa seu assento batismal, transcrito a seguir.

Pedro, filho legítimo de Antônio de Seabra e de sua mulher Catarina Gonçalves, do lugar da Serminhã desta freguesia, nasceu aos catorze dias de outubro do ano de seiscentos e noventa; foi batizado nesta igreja aos vinte e dois dias do dito mês. Foram padrinhos eu, Pedro de Matos e Siqueira, abade desta igreja, e Maria, solteira, filha de Gonçalo de Seabra, desta freguesia; E batizou de minha licença o padre Pedro Fernandes da Silva desta freguesia.
No processo de habilitação encontrado pelo primo Miguel, por sua vez, lê-se que informantes disseram que o habilitando Pedro Dias de Seabra era “sujeito de bom procedimento, vida e costumes, e muito capaz de poder ser encarregado de negócios de importância e segredo”. E mais disseram que ele vivia “limpa e abastadamente, e […] que possuirá de seu mais de trinta mil cruzados, que sabe ler e escrever e que representa ter quarenta anos de idade, pouco mais ou menos”.
Os dados são coerentes com o que se tem de documentação da vida de Pedro e informam que ele já deveria estar muito bem estabelecido na Bahia há algum tempo. E é aqui que podemos relacionar a história pessoal de Pedro ao drama narrado anteriormente, pois, logo após as declarações acima, os informantes informaram que Pedro:
[…] se casou, haverá um ou dois meses, a esta parte, com D. Ana Pereira Marinho, filha legítima do capitão Vasco Marinho Falcão, já defunto, e de sua mulher D. Catarina de Tal, pessoas principais ou das principais famílias desta terra, moradores que me parece foram na freguesia de Santiago do Iguape […]
A coincidência dos nomes permite supor que Ana Pereira era irmã de Isabel d’Ávila e Leonor Pereira Marinho, as personagens envolvidas no drama familiar narrado antes. É neste ponto que surge um dado interessante: se a interpretação estiver correta, Pedro se casou com uma mulher que teria, pelo menos, 25 anos a mais do que ele. Ela poderia ser já viúva e certamente não houve descendência desse matrimônio. O curioso é que em nenhuma obra genealógica se encontra registro de Ana Pereira Marinho. Apenas a sorte de haver um processo de habilitação de seu marido revelou sua existência.
Segundo também declararam os informantes, Pedro tivera, de uma mulher de identidade ignorada que se achava “nas Minas”, um filho chamado João Dias, que era estudante de “Filosofia nos estudos gerais com os padres da Companhia”. No mais, ele havia permanecido solteiro até se encontrar com Ana, e o que o levou a se casar com uma mulher bem mais velha é algo que só posso especular. Imagino que possa ter tido relação com o nome e a ascendência da família de sua mulher, que mesmo o escândalo do passado pode não ter apagado.
Pedro Dias ainda teve confirmado pelo rei D. João V, em 1737, seu cargo de sargento-mor da povoação de Porto Seguro conforme se lê no livro 29 (f. 66) do Registo Geral de Mercês de D. João V, disponível na base de dados da Torre do Tombo. Parece que esse aparentado homônimo de meu antepassado direto finalmente teve seu quinhão de fama na sociedade baiana do século XVIII.
José Araújo é genealogista.