Queridos netos,

Vocês não me conheceram, pois eu já havia partido quando vocês nasceram. Nasci muito antes de vocês, no século XIX. O local, a vila de Barcos, no concelho de Tabuaço, em Viseu, Portugal. Meus pais casaram-se em 1853 e tiveram cinco filhos antes de mim – Luís, José Augusto, Maria Natividade, Manoel e Delfina.

Três anos depois que nasci, meu pai morreu atingido por um raio. Tinha apenas 46 anos. Minha mãe viu-se, então, com a responsabilidade de cuidar de três adolescentes e três pequenos, o menor de todos sendo eu, então com três anos. Dona Luísa vinha de uma tradicional família local, na qual havia médicos, militares, padres, proprietários de terra e até uma suposta santa.

Famílias grandes como a nossa não eram raras em Portugal naquela época, mas muitos pequenos morriam ainda na infância, na adolescência e até nos primeiros anos da vida adulta – meu irmão Luís, por exemplo, morreu solteiro aos 26 anos, idade em que era normal o homem se casar e ter filhos.

Eu não fui exceção e me casei aos 25 anos com Eliza de Macedo, com quem tive sete filhos antes de virmos para o Brasil. Partimos de Leixões no vapor Heidelberg e chegamos a Santos, onde desembarcamos em 14 de abril de 1905. Eu tinha 36 anos, Eliza tinha 31 e nossa filha mais nova, Delfina, apenas um aninho.

Porto e cidade de Santos em 1905

Imaginem a aventura que era cruzar o Atlântico em um navio a vapor naquela época e com tantos filhos! Ainda assim, viemos, pois era necessário “fazer a América”. Dois irmãos de Eliza – Vasco e Maximiano – aqui já se encontravam há algum tempo, na localidade que viria a ser conhecida como Nova Iguaçu, mas era então conhecida como Maxambomba.

Em Maxambomba comprei um sítio onde hoje fica a Estrada de Madureira e comecei a me dedicar à lavoura, plantando hortaliças e frutas. A agricultura nos sustentaria, como havia sustentado nossa família lá em Portugal. Alguns anos mais tarde, José Augusto, meu filho mais velho, com grande espírito empreendedor, decidiu tentar a vida por conta própria e saiu de casa com seu irmão Antônio. Para minha enorme tristeza, Antônio seria acometido de tuberculose e morreria ainda jovem algum tempo depois.

José Augusto seguiria em frente com seus planos e, com um empréstimo do tio e padrinho Vasco, compraria um sítio e seguiria meus passos tornando-se agricultor. Seria apenas a primeira iniciativa dele, que mais tarde compraria mais terras e se tornaria um dos citricultores que tornaram a região um grande centro produtor e exportador de laranjas. Esse filho ainda teria uma fábrica de cerveja e, em sociedade com um patrício, construiria casas populares para vender. Em 6 de março de 1917, mais uma desgraça se abate sobre nossa família: minha amada Eliza nos deixa, aos 43 anos.

Eu aos 50 anos

Eu estava para completar 50 anos de uma vida de muito trabalho, muita disciplina e ainda com filhos que dependiam de mim. Não poderia passar os anos que me restavam no estado de viuvez. Foi então que conheci a bela Josefa Rebosa, uma jovem de 18 anos e olhos sedutores que trabalhava na Cruz Vermelha. Josefa estava noiva de um médico que conhecera, porém rompeu o noivado e, em novembro de 1918, já estávamos casados. Dona Maria Benedicta, minha sogra, não fazia gosto, pois certamente preferia ver a filha casada com um médico e não com um viúvo tão mais velho e com tantos filhos.

Josefa com Júlio e a pequena Maria

Josefa e eu tivemos seis filhos. Acredito que eu tenha sido um pai carinhoso, dentro dos padrões da época. Certamente era muito observador e severo e todos os filhos tinham sua contribuição das atividades da casa. Sempre fomos uma família religiosa, mas eu nunca gostei muito de padres – acredito que seja um costume de família desde Portugal.

Nunca mais voltei a Portugal e não costumava falar da vida lá. Sempre trabalhei muito. Nunca fomos ricos, mas vivíamos bem. Meu único orgulho era de estar sempre bem vestido, de botas, chapéu e abotoaduras de ouro que me eram presenteadas pela querida filha Lourdes.

Espero que tenham orgulho de sua história, pois ela será a herança que jamais será retirada de vocês.

Um beijo de seu avô,


José de Araújo é linguista e genealogista.


José Araújo

Genealogista

6 comentários

Genealogia Prática - Religiosidade · 16 de maio de 2018 às 11:04

[…] ser diferente. Segundo relato de uma tia paterna, seu pai, meu avô Antonio Maria Pinto de Araújo, não gostava de padres. Ela desconhece a razão, mas fez essa afirmação sem nenhuma dúvida, o que me leva a supor que […]

Genealogia Prática - Polícia · 21 de setembro de 2018 às 15:41

[…] avô Antônio Maria Pinto de Araújo teve dois casamentos. Sou neto de Josefa, com quem ele se casou aos 50 anos, em 1918, depois um […]

Genealogia Prática - Homonímia · 29 de setembro de 2018 às 10:38

[…] de meu avô paterno por seu primeiro casamento com Luiza de Macedo. Maximiano e seu irmão Vasco chegaram ao Brasil antes de 1905 e se estabeleceram em Maxambomba, atualmente a cidade de Nova […]

Genealogia Prática - Anarquista · 1 de outubro de 2018 às 07:11

[…] seu cunhado, meu avô Antônio Maria Pinto de Araújo, tinha a respeito de padres – segundo relato pessoal de sua filha Maria da Penha, minha tia paterna. Talvez a questão anticlerical tivesse marcado a […]

Precipitação – Genealogia Prática · 19 de janeiro de 2022 às 08:01

[…] que poderiam induzir a essa dedução. O primeiro diz respeito ao relato de uma tia paterna de que meu avô não gostava de padres. Ora, ser anticlerical não implica uma origem judaica e suspeito que meu avô tenha sido em algum […]

Portugueses – Genealogia Prática · 12 de junho de 2023 às 09:16

[…] Da segunda metade do século XIX até a década de 1930 foram as necessidades do povo português que impulsionaram as ondas migratórias para o Brasil – e também para os Estados Unidos. Predominou a chegada de pessoas empobrecidas, principalmente mulheres e crianças órfãs ou abandonadas. Eram pessoas humildes que viram no Brasil oportunidade de sobreviver e criar suas famílias com dignidade. Muitos conseguiram e se fixaram definitivamente no país, como foi o caso de meu avô, natural de Viseu, que nunca mais retornou à terra de seus antepassados. […]

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