Este texto é o segundo da série que chamei de factos da vida em que retomo algumas questões que sempre geram surpresa ou abrem discussões nos fóruns públicos. Aqui trato especificamente dos testes genéticos e de alguns aspectos relativos a seus resultados que não são bem compreendidos pelo público em geral. Inicialmente abordo os resultados que dizem respeito a uma ancestralidade africana para depois discutir a questão da quantidade de centimorgans compartilhados com os matches de DNA, que costumo tratar como primos genéticos, embora possam até representar um parentesco mais próximo.
A ancestralidade africana é algo com que qualquer brasileiro cuja família esteja no Brasil pelo menos desde o início do século XX deve contar. Mesmo aqueles que tenham avós europeus em ambos os costados não devem se surpreender ou considerar erro a descoberta de um percentual de DNA autossômico ou ainda de DNA mitocondrial africano, especialmente se um (ou ambos) dos ramos familiares for ibérico. Aqui o conhecimento de História vem em nossa ajuda. Como informa Laurentino Gomes no primeiro volume de Escravidão, o primeiro leilão de africanos escravizados com registro histórico ocorreu em 8 de agosto de 1444 em Lagos, no Algarve, isto é em pleno território português. Os registros dão conta de que os escravizados eram africanos do norte de religião muçulmana da região que hoje é a Mauritânia. Seria o primeiro leilão de muitos que mais tarde passaram a vender também africanos subsaarianos. Como consequência do sucesso desse negócio:
Portugal foi o primeiro país europeu moderno a ter uma significativa população de origem africana. Por volta de 1550, já contava com 32 mil escravos, entre mouros e negros, que representavam pouco mais de 3% do total de 1 milhão de habitantes. […] Igualmente já conhecida na época era a expressão “mercado negro”, usada para designar as feiras de compra e venda de africanos existentes em Lisboa, Évora, Lagos e Porto, cidades em que 10% dos moradores eram cativos. “Com exceção dos mendigos, todo mundo tinha escravos em Portugal, do rei ao mais simples trabalhador, incluindo as prostitutas”, escreveu o historiador A. C. Saunders. […] Nas cidades, trabalhavam em serviços domésticos, incluindo a limpeza das casas, lavagem das roupas, preparação de alimentos e retirada de dejetos e esgotos. No interior, atuavam em atividades agrícolas. _ Escravidão Volume 1: do primeiro leilão de cativos em Portugal até Zumbi dos Palmares.
É indiscutível que os portugueses tiveram geração com as mulheres que escravizaram tanto em Portugal continental quanto nos domínios de seu vasto império, e que migrações de seus descendentes para outros domínio territoriais – como as ilhas atlânticas e mesmo para outros países da Europa – devem ter carregado essa herança africana que é detectável ainda hoje pelos testes genéticos. Em muitos casos é registrada uma herança norte-africana, que pode ser creditada à ocupação moura da Península Ibérica, mas também aos mouros escravizados após essa ocupação, citados no trecho acima.
Ocorre também com frequência, principalmente entre os brasileiros, a detecção do haplogrupo materno L e suas variantes, que é característico da África subsaariana. Nesses casos, os sites dos laboratórios que vendem os testes costumam informar ascendência africana ocidental congolesa ou angolana, o que, embora talvez não revele toda a ancestralidade do cliente, não deveria surpreender ninguém, pois:
Estima-se que, de um total de 10,5 milhões de cativos que chegaram vivos ao continente americano até a metade do século XIX, pelo menos 5,7 milhões, ou 54% do total, vieram dessa região. A proporção foi ainda maior em relação ao Brasil: cerca de 70% dos 4,9 milhões de cativos que desembarcaram em terras brasileiras até a proibição do tráfico pela Lei Eusébio de Queirós, de 1850, provinham de Angola ou áreas vizinhas. […] Angola se tornou a principal fonte de escravos para a América Portuguesa. […] Mais do que em qualquer outra região da África, as comunicações e o comércio de escravos entre Brasil e Angola eram estimulados pelas correntes marítimas e os ventos complementares, que impulsionavam a navegação a vela. _ Escravidão Volume 1: do primeiro leilão de cativos em Portugal até Zumbi dos Palmares.
A respeito dos centimorgans – abreviado como cM – em comum a polêmica é ainda maior, pois os valores costumam variar entre os laboratórios e alguns deles somam segmentos pequenos, o que infla o resultado final. Por garantia, é melhor levar em conta apenas o maior segmento, que deve estar entre 15cM e 20cM ou mais para que se possa iniciar uma investigação que permita encontrar o antepassado em comum com um match que talvez ajude no desenvolvimento de um ramo da árvore que parece estagnado. Claro que esse desenvolvimento dependerá de o match ter uma árvore mais desenvolvida que a sua ou ao menos mais informações sobre o ramo comum de interesse. Em minha árvore tive a sorte de ter matches com pessoas que tinham árvores relativamente desenvolvidas e que também testaram parentes como eu também fiz.
O primeiro match – Vivian – foi assunto de um texto publicado aqui. Sua mãe havia sido testada também e os cM em comum em relação a mim eram 51cM e 53cM, respectivamente, valores bem altos e promissores, por sinal. Após fazer contato com Vivian por e-mail, iniciamos buscas e discussões que só tiveram sucesso quando consegui descobrir a filiação de meu bisavô João Pereira Belém. Graças a essa descoberta, pude esclarecer nossa ancestralidade comum no casal João Pinheiro de Souza (1722-1782) e Paula Pereira Monteiro (1725-?), que tiveram uma descendência bastante significativa que se espalhou pelo sul fluminense e pelo Espírito Santo (ES).
O segundo match foi um caso similar de mãe e filha – esta chamada Juliana – que tiveram, respectivamente, 20cM e 12cM em comum comigo. Após contato, o procedimento foi similar, mas a situação revelou-se diferente por já haver em nossas árvores ramos que habitaram a mesma região – Seropédica – e alguns sobrenomes promissores, como Ramos. Apenas quando pude comprovar que dois homens da árvore de Juliana que tinham sobrenomes bem diferentes – Pereira de Faria e Pamplona Cortes – eram pai e filho, pude confirmar nossa ancestralidade comum em Francisco Antônio Pereira Belém (1746-1833), de quem meu bisavô João Pereira Belém deve ter recebido seu sobrenome de forma ainda não totalmente esclarecida.
Esses dois casos demonstram que pela seleção de matches com boa quantidade de cM em comum, testagens múltiplas e muita pesquisa documental é possível explorar os resultados dos testes genéticos com algum sucesso.
José Araújo é genealogista.