Tomemos informações na Mesa, e com os comissários Manoel Gonçalves e Manoel Teixeira da Cunha, e Notário Francisco Martins, sobre a pureza de sangue, e mais requisitos do Doutor Vicente Gonçalves Lage, que pretende ser Familiar do Santo Ofício, contendo na petição inclusa, que V.Exª nn manda informar; e achamos que por seus pais e avós paternos e maternos é legítimo e inteiro cristão velho, sem fama, nem rumor em contrário; sem que lhe obsta a [filta] de notícia do avô materno Antônio Barbosa de Matos, a qual se poderá suprir nas judiciais; posto que conste nas diligências que lhe foram feitas para a habilitação pelo ordinário, não teve embaraço algum. É sacerdote e opositor em Cânones às cadeiras desta Universidade com boa reputação de literatura e de boa vida e costumes, com juízo e capacidade para servir ao Stº Ofício na ocupação que quer ter; trata-se com muita decência, sendo bem [] de seus pais, que mostram serem abastados de bens, e representa ter trinta anos de idade. Nunca foi casado nem costa que tenha filhos ilegítimos. Parece-nos que está em termos de V.Exª lhe fazer a mercê que pretende. V.Exª mandará o que for servidor. Coimbra no Stº Ofício em More. 20 de fevereiro de 1764
A transcrição que se lê acima é a abertura do processo em que o padre brasileiro Vicente Gonçalves Lage, 30 anos, de família abastada e doutor em Cânones pela Universidade de Coimbra, solicita sua aprovação para atuar como Familiar do Santo Ofício, cargo para o qual se exigia a investigação das origens familiares do pretendente. Aquele que em sua ascendência apresentasse um antepassado judeu, muçulmano, indígena ou mulato era vetado por não suprir o requisito da pureza de sangue.
Familiares do Santo Ofício atuavam no apoio ao Tribunal do Santo Ofício – vulgarmente conhecido como Inquisição – auxiliando os inquisidores executando prisões de suspeitos de heresias, sequestrando os bens daqueles que fossem condenados e até cuidando, quando médicos, daqueles que fossem torturados. Embora precisassem ser puros de sangue, não precisavam pertencer ao clero, razão pela qual homens casados poderiam pleitear o cargo desde que não houvesse suspeitas ou fama de mau comportamento em suas famílias. Para se tornar um Familiar do Santo Ofício, portanto, o pretendente precisava passar por um processo de investigação bastante minucioso, mas o resultado era bem recompensador, pois o aprovado usufruía de prestígio social, livrava sua família do olhar maléfico dos inquisidores e ainda obtinha isenção de certos impostos.
Vicente Gonçalves Lage era filho de Domingos Gonçalves Chaves e Micaela dos Anjos Coutinho, que foi irmã de Josefa de Matos Barbosa, avó de Antônio Soares da Silva, patriarca de uma família que se estabeleceu em Bananal de Itaguaí e está na origem de meu costado materno. Vicente era também tio de Domingos Vidal Barbosa Lage, José Lopes de Oliveira e Francisco Antônio Lopes de Oliveira, membros da elite colonial mineira que se rebelava contra os excessos arrecadatórios da administração colonial e acabou cometendo o crime de Lesa Majestade por inconfidência, pelo qual seria severamente punida. Podemos supor, portanto, que o padre Vicente poderia desejar mais que apenas prestígio ao pleitear o cargo de Familiar do Santo Ofício.
José Araújo é linguista e genealogista.
1 comentário
Melanização – Genealogia Prática · 1 de janeiro de 2022 às 16:31
[…] estão entre os primeiros moradores da cidade do Rio de Janeiro , alguns inconfidentes e até um membro do Tribunal do Santo Ofício. Casaram-se também com os Moura, descendentes de Felipe Nery de Moura (1740-1802), cuja filiação […]
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