Aos vinte dois dias do mês de novembro de mil oitocentos e trinta e um, nesta freguesia do Sacramento da Sé e [rua] de São Joaquim, faleceu o inocente João, filho legítimo de João Antônio e de Justina Maria de Carvalho. Foi amortalhado de Menino do Coro e encomendado por mim, e sepultado na capela de Santa Efigênia. De que fiz este assento que assinei. O coadjutor José Simões da Fonseca.

Óbito de João

Os pais do menino João provavelmente viviam no centro da cidade do Rio de Janeiro e moravam na Rua de São Joaquim, hoje Marechal Floriano. Essa rua, que já foi dividida em duas – a Larga de São Joaquim e a Estreita de São Joaquim – iniciava-se na vala – hoje Rua da Uruguaiana – e terminava no Caminho do Valongo – hoje Rua Camerino – , onde funcionou o infame comércio de africanos escravizados entre os séculos XVIII e XIX. Justina Maria de Carvalho, a mãe do menino, era natural da distante freguesia de Santo Antônio de Jacutinga, hoje na Baixada Fluminense. Não se sabe por que ela se casou tão longe de onde nasceu, mas é isso o que declara seu assento matrimonial, registrado em livro da freguesia da Candelária e transcrito a seguir.

Aos vinte sete dias do mês de maio de mil oitocentos e vinte seis anos, nesta matriz da Candelária, pelas sete horas da noite, por especial graça de sua Excelência Reverendíssima, em minha presença e das testemunhas abaixo assinadas, na forma do Sagrado Concílio Tridentino e Constituição do Bispado, por palavras de presente, se receberam em matrimônio com provisão do Reverendo Doutor Juiz dos Casamentos, João Antônio de Almeida, filho legítimo de Pascoal Francisco [Tomás] e de Natária Maria da Conceição, natural e batizado na freguesia de Nossa Senhora da Vitória, Capitania do Espírito Santo, com Justina Maria de Carvalho, filha legítima de Manoel Veloso de Carvalho e de Fermiana Maria Xavier, natural e batizada na freguesia de Santo Antônio de Jacutinga. E receberam as bênçãos nupciais na forma do Ritual Romano. De que fiz este assento que assinei. O Coadjutor Sebastião dos Reis Saraiva.

Pelo assento sabemos que Justina era filha do casal Manoel Veloso de Carvalho e Fermiana Maria Xavier, de quem tratei em texto anterior, no qual revelei que esse era um casal de pardos forros, ou seja, livres, porém descendentes de escravizados. Revelei ainda que Manoel, que era filho de Maria Angola, nasceu escravizado e recebeu carta de liberdade aos cinco anos por seu pai, o fazendeiro Miguel Veloso de Carvalho. Sobre Fermiana, revelei que era filha de Ana Maria Xavier, mulher forra que pode ter nascido na África ou ter sido filha de uma mulher africana de cuja origem ainda não se tem conhecimento, mas pode estar no ramo dela a explicação para a declaração, no assento de óbito do menino João, de que ele foi sepultado na capela de Santa Efigênia.

Essa capela é hoje a Igreja de Santo Elesbão e Santa Efigênia, localizada na rua da Alfândega, dentro do centro comercial popular conhecido como Saara. A igreja foi construída entre 1745 e 1754 por pessoas devotas desses dois santos que eram de origem africana – ele, imperador da Abissínia; ela, princesa núbia – e que, até abril de 1740, os cultuavam em uma residência na freguesia da Candelária. Em abril daquele ano, essas pessoas pediram permissão para erguer uma capela para que o culto pudesse ocorrer em condições mais adequadas. A permissão foi dada em maio, quando se constituiu uma irmandade composta de pretos, forros e escravizados oriundos predominantemente da Costa da Mina, mas também de de Cabo Verde, Moçambique e São Tomé.

Junto da igreja foi fundado um cemitério que existiu até 1850, quando foram proibidos os enterramentos dentro e ao redor das igrejas. O menino João talvez tenha sido sepultado dentro ou fora da capela de Santa Efigênia porque seus pais – e/ou talvez um de seus avós – seriam ligados à irmandade, o que sugere uma origem ancestral em Cabo Verde, Costa da Mina, São Tomé ou Moçambique, esta última uma região de embarque de grande parte dos africanos escravizados trazidos para o Rio de Janeiro.

Igreja de Santo Elesbão e Santa Efigênia

Esse achado não responde a pergunta sobre a origem geográfica de meus antepassados desse ramo dentro da diáspora africana, mas sugere um caminho para mais pesquisas. Outras evidências podem surgir de matches de DNA cuja origem aponta uma região específica do litoral africano, mas isso é tema para o próximo texto.


José Araújo é genealogista.