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O padre Nunes, cumprindo incumbência que lhe passara Nóbrega, funda em São Vicente um colégio de jesuítas, além da respectiva igreja. […] Ele ouve dizer que “no campo, 14 ou 15 léguas daqui, entre os índios”, existiria “alguma gente cristã derramada“, a qual passava o ano “sem ouvirem missa e nem se confessarem, e andarem em uma vida de selvagem”. _ POMPEU DE TOLEDO, Roberto. A capital da solidão: uma história de São Paulo das origens a 1900.
O campo onde vivia a tal “gente cristã derramada” era o planalto acima da Serra do Mar, serra essa que parecia uma verdadeira muralha para os primeiros europeus que desembarcavam no litoral do atlântico meridional no século XVI, momento a que se refere a citação introdutória. O acesso ao tal planalto – onde seria fundada a cidade de São Paulo – e à tal gente cristã desgarrada só se fazia pelas trilhas abertas pelos indígenas em meio à floresta tropical.

O texto citado informa que as ovelhas cristãs desgarradas viviam em meio aos índios, e um dos primeiros a fazê-lo teria sido o português João Ramalho, filho de João Velho Maldonado e Catarina Afonso de Balbode. Não se sabe como ele chegou às costas brasileiras – especula-se se seria um náufrago, um degredado ou um aventureiro em busca de riquezas -, mas o facto é que ele aqui já se encontrava em 22 de janeiro de 1532, dia que se atribui à chegada da esquadra de Martim Afonso de Souza (1500-1564) em São Vicente.
Reza a lenda que João Ramalho teria descido do planalto para receber Martim Afonso em São Vicente e que viera acompanhado de sua gente, a qual certamente deveria incluir tanto os filhos que tivera com Mbicy (Bartira), filha do cacique Piquerobi, quanto outros membros da tribo de sua mulher, os tupiniquins. Conta-se que andava nu, que tivera outras mulheres além de Mbicy e que ia à guerra e celebrava com (e como) os índios. João vivia, portanto, em flagrante desobediência aos preceitos da fé católica, o que o caracterizava como uma das gentes cristãs derramadas de que ouvira falar o padre Nunes.
Do casamento de João Ramalho e Mbicy, depois batizada de Isabel Dias, nasceram vários filhos mestiços de que há algum registro e que originaram inúmeras famílias paulistanas. Dentre esses filhos destaco Joana Ramalho, que se casaria com o capitão-mor e ouvidor da capitania de São Vicente Jorge Ferreira e que seria a sogra de Gonçalo Camacho e a avó de Maria Camacho, a qual se casaria com Cristóvão Diniz, almoxarife da fazenda real em São Vicente. Todos os mencionados são meus antepassados por via de minha tetravó Maria Tereza da Paz (1791-1855), portanto também descendo de João Ramalho e Mbicy.
Mbicy-Bartira é até o momento minha segunda antepassada ameríndia confirmada e há registro de uma sua descendente em linha matrilinear – também via Joana Ramalho – que teria feito o teste de DNA mitocondrial, pelo que se constatou a presença do haplogrupo A2aa, típico da gente brasílica, como se costumava chamar os indígenas nos primeiros anos da colonização.
José Araújo é genealogista.