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Quem assistiu à série A Grande Descoberta deve ter percebido como é possível que um genealogista acumule grandes volumes de evidência sem chegar a nenhuma solução para um caso. Na série, o genealogista busca a identidade de um criminoso que cometeu um duplo homicídio que realmente ocorreu em uma cidade da Suécia. Na vida cotidiana, um genealogista pode ter de lidar com a busca da identidade do genitor de um cliente ou ainda da de um antepassado que tenha sido registrado como ‘filho natural de’. Eu me encaixo várias vezes na segunda circunstância por conta de meus bisavós maternos serem filhos de pais desconhecidos. Em ao menos dois casos – leia aqui e aqui – consegui chegar ao pai biológico por Genealogia genética e análise de documentos de pessoas próximas.
Um desses casos foi o do meu bisavô João Pereira Belém, que apenas se casou no civil com minha bisavó Teodora em 1900, mas já tivera com ela dez filhos que foram batizados apenas com o nome da mãe. Após o casamento, João e Teodora tiveram mais dois filhos e nos registros de nascimento dessas crianças foi declarado o nome do avô paterno – Pedro Gomes de Moraes. Evidências de Genealogia genética corroboraram a pista documental. Mas persistiu uma questão: por que meu bisavô João era um Pereira Belém se seu pai não tinha esse sobrenome?
Há pouco tempo publiquei um texto em que forneço uma hipótese para essa aparente incoerência: Maria Teresa da Paz (1791-1855), mãe de meu trisavô Pedro Gomes de Moraes, era casada com Joaquim Francisco do Rego (1766-1837), de ascendência açoriana, mas viveu por mais de uma década separada do marido e amasiada de um homem chamado Pedro Cipriano Pereira Belém (1791-1860), filho do patriarca – Francisco Antônio Pereira de Faria (PF) (1746-1833) – que passou a assinar como Pereira Belém (PB) quando já vivia na freguesia de São Francisco Xavier de Itaguaí. Com Pedro Cipriano, Maria Teresa teve cinco filhos que foram reconhecidos pelo pai, mas ela supostamente tivera dois do marido: José e Pedro, que levavam o Gomes de Moraes da família dela. Minha hipótese era que Pedro Cipriano seria o pai de todos os filhos de Maria e essa talvez fosse a razão para que Joaquim Francisco tivesse se separado dela.
Reconheço que é uma hipótese válida, mas um tanto rebuscada. Afinal, Pedro Cipriano reconheceu cinco dos filhos que teve com Maria. Por que não reconheceria também os outros dois se eram também seus? Diante dessa questão, eu me voltei para outra explicação que já havia cogitado várias vezes: o Pereira Belém poderia vir da mãe de meu bisavô João, chamada apenas Joaquina da Conceição. Nomes devocionais como o dela não apresentam sobrenomes de família, o que dificulta a busca pelos antepassados diretos. Mas que evidências eu teria em favor dessa segunda hipótese?
Bem, elas são inúmeras e para organizá-las eu proponho a Estratégia dos N, sendo essa letra usada para substituir a quantidade exata de evidências disponíveis no caso analisado. A ideia é relacionar as pistas já encontradas de forma sintética em uma lista numerada de forma que possam ser consultadas sem muito esforço. Na lista abaixo reuni dez (N = 10) pistas em favor de uma explicação de que meu bisavô João poderia descender dos Pereira Belém por seu ramo materno:
- João Pereira Belém (doravante João PB), meu bisavô, nasceu perto de 1848 na freguesia de São Francisco Xavier de Itaguaí, Rio de Janeiro;
- Seu pai, como descobri, era Pedro Gomes de Moraes e sua mãe, Joaquina da Conceição;
- O primogênito de João PB e sua mulher Teodora foi batizado como Pedro em 1879 e havia um antigo costume de dar ao primogênito o nome do avô paterno (o avô desse Pedro Pereira Belém era Pedro Gomes de Moraes);
- O menino Pedro (Pereira Belém) teve por padrinho de batismo um homem chamado Alexandre Pereira Belém;
- Um homem chamado Alexandre Pereira Belém faleceu em 1887, oito anos após o batismo de Pedro, e o óbito informa que o falecido era “preto liberto, brasileiro, com setenta e oito anos presumíveis, solteiro” e paroquiano na freguesia de São Francisco Xavier;
- Tenho dois matches autossômicos – mãe (32 cM) e filha (12 cM) – que descendem duplamente do patriarca Francisco Antônio PB: pelo filho João Pereira de Faria (1783-1833, doravante João PF1) e pelo filho Fortunato Pereira Belém (1800-1843), ambos irmãos inteiros de Pedro Cipriano Pereira Belém;
- Uma escravizada pertencente a um João PF (doravante João PF2, 1819-1880), que acredito ser filho legítimo de João PF1, teve por padrinho de batismo de seu filho Gabriel, em 1875, um Alexandre Pereira Belém, que não foi identificado no assento como escravizado (ver imagem abaixo);
- A madrinha do menino Gabriel foi uma mulher escravizada chamada Joaquina, que pertencia a Antônio Pereira de Faria, que seria um filho de João PF2 e sua mulher Francisca Maria da Conceição;
- Entre os escravizados relacionados no inventário de Joana Maria de Jesus (1760-1834), viúva do patriarca Francisco Antônio e mãe de Pedro Cipriano, João PF1 e Fortunato Pereira Belém, havia um jovem de 18 anos chamado Alexandre, que bem poderia ser o já citado Alexandre Pereira Belém;
- Outros filhos de meus bisavós João PB e Teodora tiveram por padrinhos de batismo pessoas relacionadas a João PF1 e a seu pai: o filho João, batizado em 1881, teve por madrinha Saloméa de Moura Cortes, neta de João PF1; a filha Maria, batizada em 1894, teve por madrinha Maria Paula de Moura Souza, que era trineta do patriarca Francisco Antônio e enteada de Leocádio Pamplona Cortes, que por sua vez era filho de João PF1; a filha Esmeralda, batizada em 1903, teve por padrinhos Álvaro Vieira de Moura Sá e sua irmã Bráulia Olympia de Moura Sá, que eram trinetos do patriarca Francisco Antônio PB.

Diante dessas pistas, surgem duas hipóteses:
- Alexandre Pereira Belém (1809-1887) seria pai solteiro de Joaquina da Conceição, minha trisavó, sendo ele mesmo filho ilegítimo de um Pereira Belém – talvez do patriarca Francisco Antônio PB – com uma escravizada;
- Alexandre Pereira Belém seria tio de Joaquina, que seria filha ilegítima de João PF1 com uma escravizada.
A favor de ambas as hipóteses estariam os matches citados – mãe e filha descendentes de João PF e portanto do patriarca Francisco Antônio PB – que também aparecem na plataforma GEDMatch para minhas primas maternas Simone e Regina e que, pela quantidade de DNA compartilhado (em centimorgans), teriam um parentesco de terceiro a quinto graus conosco – ver gráfico abaixo. Além disso, a escolha de Alexandre para padrinho no batizado de Pedro, o neto primogênito de Joaquina, sugere que houvesse parentesco entre eles. A suspeita de que João e Joaquina fossem afrodescendentes pode ter respaldo nessa relação de compadrio, visto que Alexandre fora escravizado e depois libertado antes mesmo da Lei Saraiva-Cotegipe de 1885, mais conhecida como Lei dos Sexagenários.

A favor da segunda hipótese está o costume de dar ao filho o nome do avô. Não tenho informação de que meu bisavô João PB tivesse irmãos, mas, ainda que ele não fosse o primogênito, poderia ter recebido o nome do suposto avô materno: João PF1. A relação entre Joaquina e Pedro Gomes de Moraes que gerou meu bisavô João PB poderia ser explicada pela proximidade decorrente de Maria Teresa da Paz, a mãe de Pedro, manter um relacionamento com Pedro Cipriano, que era irmão de João PF.
A Estratégia dos N não resolveu o caso da filiação de minha trisavó Joaquina, mas encaminhou novas hipóteses até que surjam mais evidências. Essa estratégia pode ser adaptada em função da quantidade de evidências disponíveis, contanto que se mantenha o procedimento de criar uma lista sintética que abarque evidências de natureza diversa – documentos e resultados de testes de DNA, por exemplo.
José Araújo é genealogista.
2 comentários
Escolhas – Genealogia Prática · 1 de abril de 2025 às 09:23
[…] era filho natural de Pedro e deve ter escolhido o sobrenome composto de seu ramo materno, o que apenas suponho, pois sua mãe escolheu o nome devocional de Joaquina da Conceição; minha mãe após o casamento […]
Candidato – Genealogia Prática · 14 de abril de 2025 às 07:33
[…] Em texto anterior, descrevi como Joaquina estaria relacionada a um homem chamado Alexandre Pereira Belém (a) que em 1834, com 18 anos de idade (portanto nascido em 1816), fora incluído no rol de escravizados de Joana Maria de Jesus, viúva de Francisco Antônio e mãe de João Pereira de Faria; (b) que depois, em 1875, foi padrinho, sem mais indicação de ser ainda cativo, no batismo de Gabriel, um menino escravizado que pertencia a um filho homônimo do mesmo João Pereira de Faria; (c) que em 1879, identificado apenas como solteiro, batizou o primogênito de meu bisavô João Pereira Belém; e (d) que faleceu em 1887 tendo sido descrito em seu óbito como um homem “preto, liberto, brasileiro, com 78 anos presumíveis e solteiro”. […]
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